32 Le Monde Diplomatique Brasil^ OU T U BRO 2019
nagement e outros métodos de reengi-
neering. Isso foi mesmo lucrativo para
as mencionadas consultorias, mas di-
ficilmente benéfico para os agentes
hospitalares, que além de tudo foram
responsabilizados pela situação im-
possível criada pelas autoridades pú-
blicas. Confortados em suas posições
pela ministra, aqueles e aquelas que,
desde os anos 2000, criticavam as es-
colhas feitas pelos sucessivos gover-
nos – escolhas de uma notável conti-
nuidade, para além das alternâncias
- puderam começar a se desvencilhar
do rótulo de “esquerdistas” que seus
oponentes tinham grande prazer em
colar em suas costas.
No entanto, entre a retórica e os
atos, há um abismo, às vezes muito
profundo. A reforma apresentada por
Buzyn mistura boas intenções e de-
magogia. Muitos objetivos, mal defi-
nidos e não hierarquizados para não
irritar ninguém, modos de operação
vagos, insistência em querer reorga-
nizar a medicina ambulatorial de
acordo com uma lógica de incentivo
que todos os estudos (e os fatos) mos-
tram que não funciona: estamos
diante da política simbólica em todo
o seu esplendor.
Por exemplo, o ministério espera
que as novas “comunidades profissio-
nais dos territórios da saúde” – grupos
de profissionais em determinado ter-
ritório, baseados unicamente no vo-
luntariado – melhorem a coordena-
ção. No entanto, dada a gravidade da
crise hospitalar, é provável que essa
reorganização a montante do hospital
atole nas areias das competições pro-
fissionais (generalistas/especialistas)
e interprofissionais (médicos/para-
médicos). Da mesma forma, espera-
-se que a supressão do numerus clau-
sus consiga acabar com os desertos
médicos, mas sem questionar a liber-
dade de instalação e, principalmente,
sem elevar a capacidade de formação
dos centros hospitalares universitá-
rios (CHU). Na realidade, permanece-
rão numerus clausus não oficiais, es-
tabelecidos por cada universidade de
acordo com sua capacidade de aco-
lhimento. Em suma, há grandes chan-
ces de que essa reforma, como todas
as que a precederam, seja logo enter-
rada na mais estrita intimidade.
Para conhecer o verdadeiro teor
da política de saúde de Macron, não é
para o Ministério das Solidariedades
e da Saúde que devemos olhar, mas
para a fortaleza Bercy, o Ministério
da Economia e das Finanças. De fato,
quem dirige o orçamento tem a tutela
sobre a direção da Seguridade Social,
elaborando o Projet de Loi de Finan-
cement de la Sécurité Sociale (PLFSS - Projeto de Lei de Financiamento da
Seguridade Social), votado todo ou-
tono pelo Parlamento. É lá que se de-
fine o nível anual das despesas, cha-
mado de Objectif National des
Dépenses d’Assurance Maladie (On-
dam – Meta Nacional de Despesas de
Saúde), bem como as arbitragens po-
líticas. Como o texto é árido, vamos
passar a palavra a um alto funcioná-
rio muito respeitado, ex-diretor da
Seguridade Social, ex-membro do ga-
binete de Jérôme Cahuzac e atual
presidente do Conseil d’Orientation
des Retraites (COR – Conselho de
Orientação sobre Pensões): “Talvez
seja necessário uma Ondam em 2,3%
para atingir os objetivos das finanças
públicas, mas é pouco provável que
os hospitais públicos e a qualidade do
atendimento possam suportá-la sem
ter problemas”.^11
O fato de um defensor das refor-
mas anteriores considerar insusten-
tável a restrição orçamentária já é
edificante, tanto quanto contraria a
comunicação do governo. Mas esses
comentários confirmam sobretudo
que a política de saúde é elaborada
em Bercy. A vontade presidencial de
ser o bom aluno do ordoliberalismo
defendido pela Comissão Europeia
leva inevitavelmente o governo do
primeiro-ministro Édouard Philippe
a olhar torto para os dois mastodon-
tes da proteção social, as aposenta-
dorias e a saúde, uma vez que, quanto
às despesas do Estado, já estamos no
osso. Embora os detalhes da “grande
reforma” das aposentadorias ainda
não tenham sido revelados, já conhe-
cemos seu propósito: reduzir os gas-
tos públicos. No que diz respeito à
saúde, a divisão do trabalho político
é um pouco diferente: deixam que a
ministra jogue iscas e, às escondidas,
comprimem a oferta pública de aten-
dimento, para o grande benefício dos
atores privados.
É aqui que o “hospital do futuro”
sonhado nas encostas dos Alpes en-
cerra sua majestosa descida: na aber-
tura dos mercados para as start-ups e
outras empresas de saúde. Vejamos
dois exemplos. Há alguns anos, vêm
se desenvolvendo, próximo aos hos-
pitais, os “hospitéis”, criados para
alojar pacientes que têm a sorte de
passar por uma cirurgia ambulato-
rial: eles mal acabam de aterrissar e já
são operados, e então decolam ime-
diatamente, ou quase, de volta para
casa ou rumo aos “hospitéis”. Mas as
diárias raramente são pagas pela Se-
guridade Social: quem paga são os
planos de saúde suplementares dos
pacientes – conhecidos por serem
grandes portadores de desigualdades
- ou os próprios pacientes.
Segundo exemplo: a empresa
Medtronic fornece aos hospitais sa-
las de operações de alta tecnologia
prontas para uso; em contrapartida,
eles devem se comprometer a realizar
uma série de atos pelos quais pagam
uma “taxa” à empresa privada – o
mundo das start-ups não é assim tão
filantrópico. Isso cria um incentivo
perverso para que sejam feitas cirur-
gias mesmo quando não é necessá-
rio. Para a Medtronic, é hora de falar
sobre “criação de valor” em saúde. A
empresa também participou da fun-
dação do think tank Cercle Valeur
Santé, que logo se dedicou à redação
de um “Manifesto para um sistema
de saúde baseado no valor” – um “va-
lor” que já podemos adivinhar que
não será redistribuído equitativa-
mente entre a Seguridade Social e as
empresas privadas. Isso porque,
quando uma tecnologia ou um medi-
camento criam muito “valor”, a em-
presa que os vende exige da Seguran-
ça Social o pagamento de preços
elevados que não têm nenhuma rela-
ção com os custos reais de produção.
NO PRISMA DO EXEMPLO
NORTE-AMERICANO
Por fim, o “buraco da Seguridade So-
cial” é precisamente cavado pela Ino-
vação celebrada em Chamonix, en-
quanto os meios de pesquisa pública
não param de ser reduzidos, acen-
tuando a dependência do sistema pú-
blico de saúde em relação ao capita-
lismo da saúde. O sofosbuvir, famoso
medicamento para hepatite C, custa-
va originalmente 41 mil euros para
um tratamento de doze semanas.
Apesar de um acordo entre o Ministé-
rio da Saúde e o laboratório norte-a-
mericano que o fabrica, seu preço
ainda é 28.700 euros. Números seme-
lhantes podem ser observados em re-
lação aos novos medicamentos contra
o câncer, com benefícios incertos.^12 A
“geração de valor na saúde” carrega o
risco de explodir o banco público que
é a Seguridade Social.
O diagnóstico da obsolescência de
nossa organização do setor de saúde,
herdada de uma época em que tínha-
mos o bom gosto de morrer aos 50
anos, agora é amplamente comparti-
lhado. O desafio das doenças crôni-
cas e a imbricação crescente das
questões médicas, sociais e culturais
nos obrigam a rever nossos funda-
mentos. Para responder a isso, as eli-
tes oferecem mais tecnologia e mais
soluções privadas. Segundo elas,
qualquer crise, econômica ou de saú-
de, pode encontrar solução na técni-
ca. Há muitas razões legítimas para
duvidar disso. Em primeiro lugar,
quanto mais privatizado é um siste-
ma de saúde, mais caro ele é, como
mostra o estrondoso exemplo dos Es-
tados Unidos. Em segundo lugar, dé-
cadas de pesquisa em sociologia e
história da ciência e das técnicas nos
ensinaram a não ceder ao determi-
nismo tecnológico, uma forma de
preguiça intelectual. Na realidade, é
todo o sistema, com o lugar dos vá-
rios atores, que deve ser revisto.
Optar por economias orçamentá-
rias míopes significa colocar os cus-
tos da inevitável refundação de nosso
sistema sobre os ombros dos profis-
sionais da saúde, que não aguentam
mais, e da qualidade do atendimento.
Assim, o governo deve se preparar
para ver, nos próximos meses, a mul-
tiplicação de focos de incêndio que
não conseguirá apagar com seus bal-
dinhos – bônus de insalubridade de
100 euros brutos por cuidador nos
serviços de emergência, instalação
de uma enésima “missão”... Ou, quem
sabe, amanhã, a união das lutas de
coletes amarelos e jalecos brancos?
*Frédéric Pierru é sociólogo, pesquisador
do Centre d’Études et de Recherches Ad-
ministratives, Politiques et Sociales (Ce-
raps) e do Centre National de la Recherche
Scientifique (CNRS), França. Autor, com
Pierre-André Juven e Fanny Vincent, de La
Casse du siècle. À propos des réformes de
l’hôpital public [O roubo do século. Sobre
as reformas da saúde pública], Raisons
d’Agir, Paris, 2019.
1 O autor destas linhas esteve presente em 2016
em Chamonix (como etnólogo). Mas é possível
ver a intervenção de Emmanuel Macron no site
da Cham: <www.canalcham.fr/fr/videos>.
2 Ler Anne Gervais e André Grimaldi, “La casse
de l’hôpital public” [O roubo do hospital públi-
co], Le Monde Diplomatique, nov. 2010.
3 Cf. Jean-Jacques Tanquerel, Le Serment
d’Hypocrite. Secret médical: le grand naufrage
[O Juramento de Hipócrates. Segredo médi-
co: o grande naufrágio], Paris, Max Milo, 2014.
4 Instaurado em 1971, o numerus clausus tem o
objetivo de limitar o número de estudantes em
diversos campos da saúde (medicina, farmácia).
5 Cf. Pierre-Louis Bras, “Les Français moins
soignés par leurs généralistes: un virage am-
bulatoire incantatoire” [Os franceses menos
atendidos por generalistas: uma virada ambu-
latorial mágica], Les Tribunes de la Santé,
n.50, Saint-Cloud, 2016.
6 Ler Philippe Baqué, “Ehpad: un produit renta-
ble et attractif” [Ehpad: um produto rentável e
atraente], Le Monde Diplomatique, mar. 2019.
7 Grupo de profissionais de saúde, “Nous
apportons notre soutien à la grève des urgen-
tistes” [Nós apoiamos a greve dos médicos
dos serviços de emergência], Libération, Pa-
ris, 13 jun. 2019.
8 Cf. André Grimaldi (org.), Les Maladies chro-
niques. Vers la troisième médecine [Doenças
crônicas. Rumo à terceira medicina], Odile
Jacob, Paris, 2017.
9 France Inter, 14 fev. 2018.
10 Entrevista com Edwy Plenel e Jean-Jacques
Bourdin, Mediapart/ BFM TV, 15 abr. 2018.
11 Pierre-Louis Bras, “L’Ondam et la situation
des hôpitaux depuis 2009” [Ondam e a situa-
ção dos hospitais desde 2009], Les Tribunes
de la Santé, n.59, Saint-Cloud, 2019.
12 “Anticancéreux: prix extravagants” [Medica-
mentos contra o câncer: preços absurdos],
Prescrire, n.342, Paris, abr. 2012.
O desafio das doenças
crônicas e a imbricação
crescente das questões
médicas, sociais e
culturais nos obrigam
a rever nossos
fundamentos
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