Le Monde Diplomatique - Brasil - Edição 147 (2019-10)

(Antfer) #1

OUTUBRO 2019 Le Monde Diplomatique Brasil 33


CONTRATOS DE IMPACTO SOCIAL PLANTAM RAÍZES NA FRANÇA


Solidariedade


lucrativa


O governo francês quer dar um segundo fôlego aos
“contratos de impacto social”, introduzidos na França em
2016, quando Emmanuel Macron era ministro da
Economia. O truque desse dispositivo consiste em
transferir o risco de um programa social para investidores
privados. Em princípio, todos sairiam ganhando...

POR MARGOT HEMMERICH E CLÉMENTINE MÉTÉNIER*


W


embley connected” bri-
lha em azul-neon no
céu cinzento da capital
britânica. No noroeste
da Grande Londres, o estádio trans-
formado em arena ultramoderna para
sediar os Jogos Olímpicos de 2012 exi-
be seu gigantismo. Em torno, meia dú-
zia de arranha-céus em construção
completam uma paisagem que chega
a lembrar o centro de Londres. É difícil
acreditar que estamos em um dos
bairros mais pobres da metrópole. Pa-
ra se dar conta disso, é preciso afastar-
-se das imponentes torres de vidro e
atravessar a Circular Road, que esta-
belece a clivagem social do bairro de
Brent. Chegando ao lado sul, a estética
do mundo dos negócios é substituída
pela das bancas nas calçadas. Aqui, a
proximidade com o centro fez explo-
dir os preços dos imóveis, jogando as
pessoas nas ruas.
Na capital britânica, o número de
pessoas sem-teto aumentou 169%
desde 2010.^1 No primeiro trimestre de
2018, um em cada duzentos ingleses
dormia na rua ou em moradias tem-
porárias.^2 Para evitar que pessoas em
situações de precariedade acabem na
rua, o Single Homeless Prevention Ser-
vice (SHPS, Serviço de Prevenção à Si-
tuação de Rua) lançou um “contrato
de impacto social” de 2 milhões de li-
bras (R$ 10,2 milhões). Em vez de sub-
sidiar diretamente o trabalho das duas
instituições de caridade que atuam na
região – Thames Reach e Crisis –, a ad-
ministração de Brent providenciou o
financiamento do projeto por meio de
um investidor privado: a Bridges Ven-
tures. O contrato prevê remuneração
baseada em objetivos quantificados
em relação ao número de beneficiá-
rios a serem assistidos e à duração do
acompanhamento. O Estado só paga o
investidor se essas metas forem atingi-
das, com o acréscimo de um prêmio –
fixado em 6% para esse contrato, mas
que pode atingir até 15% do montante

aportado em alguns contratos.^3 Acaba
de nascer um mercado do social.
Em uma época de restrições orça-
mentárias, o discurso está bem azeita-
do: “Brent não tem mais dinheiro para
programas de combate à moradia pre-
cária”, admite o líder do projeto, Steve
Marsland. “A única obrigação legal,
até 2017, era alojar os menores e as
pessoas com mais de 65 anos. Agora,
fornecemos às associações o capital
necessário para cuidar de todas as
pessoas em risco. E o Estado só pagará
se houver melhorias em relação à si-
tuação atual.” Um sistema “ganha-ga-
nha-ganha”, celebram seus promoto-
res: os atores sociais poderão realizar
suas ações; o Estado não vai mais des-
perdiçar dinheiro público, uma vez
que só pagará projetos considerados
eficazes; e os investidores terão ga-
nhos proporcionais aos riscos finan-
ceiros assumidos.

DIFUNDIR A CULTURA
DO “IMPACTO”
Com quase cinquenta contratos assi-
nados na última década – 28 deles en-
volvendo a administradora de fundos
privados Bridges –, o Reino Unido é o
berço dessa nova forma de financia-
mento das ações sociais, que está se
expandindo em diversas áreas: preca-
riedade, prevenção da delinquência,
educação, emprego juvenil, assistên-
cia à infância e saúde pública. O pri-
meiro contrato de impacto social foi
lançado em 2010, no governo traba-
lhista de Gordon Brown, logo após a
crise financeira. Seu sucessor conser-
vador, David Cameron, retomou a
ideia em seu discurso de 19 de julho
de 2010, sobre a política denominada
Big Society. Para ele, é preciso promo-
ver a cultura do voluntariado e da fi-
lantropia, bem como reformar o servi-
ço público, “livrando-o de sua
burocracia” e abrindo-o a novos ato-
res, como as instituições caritativas. A
ideia central: “Criar comunidades de

pessoas ousadas em bairros que cui-
dam de suas próprias questões”. Em
abril de 2012, o governo criou a Big So-
ciety Capital, uma instituição pública
financiada por quase 700 milhões de
euros dos principais bancos britâni-
cos, principalmente por meio de seus
“fundos inativos” (contas sem titular
há quinze anos).
Apesar do fracasso (rápido) do
projeto Big Society no Reino Unido,
esses argumentos pareceram seduto-
res para além das fronteiras do país. A
partir de setembro de 2010, dezenas
de contratos similares foram lançados
em todo o mundo. Inicialmente restri-
tos aos países anglo-saxões (Estados
Unidos, Canadá e Austrália), eles pas-
saram a ser exportados a um grupo de
nações que vai do Peru ao Congo, pas-
sando por Israel e outros países euro-
peus. Na ausência de regulamentação
global, as versões nacionais dos con-
tratos de impacto social podem variar,
sobretudo no que diz respeito à esco-
lha dos investidores.
A França vai com cuidado. Em 15
de março de 2016, Martine Pinville, se-
cretária de Estado da Economia Social
e Solidária junto ao então ministro da
Economia, Emmanuel Macron, lan-
çou um edital, a título de experiência.
O sucesso pareceu imediato: 62 estru-
turas sociais e associações se inscreve-
ram; treze preenchiam os requisitos. A
Association pour le Droit à l’Initiative
Économique (Adie, Associação para o
Direito à Iniciativa Econômica) assi-
nou um primeiro contrato de impacto
social com o Estado e um grupo de in-
vestidores (BNP Paribas, Caisse des
Dépôts, AG2R la Mondiale, Founda-
tion Avril e Renault Mobiliz Invest) –
um “investimento” de 1,3 milhão de
euros para realizar a integração eco-
nômica de 172 a 320 pessoas instala-
das em áreas rurais ou montanhosas.
“É uma ferramenta que garante um
financiamento plurianual de três anos,
o que hoje seria quase impossível na
lógica dos subsídios convencionais”,
afirma Marc Olivier, diretor financeiro
da Adie. “É possível ver nos contratos
de impacto social uma forma inovado-
ra de parceria público-privada (PPP),
que combina financiamento privado,
missões sociais e pagamentos basea-
dos em resultados”, avalia o economis-
ta Frédéric Marty.^4 Até então limitadas
à construção e à gestão de instalações


  • hospitais, prisões etc. –, as PPP pene-
    traram na esfera social com o mesmo
    pretexto: economizar dinheiro, embo-
    ra muitos estudos considerem esse ti-
    po de parceria caríssimo para a coleti-
    vidade, uma “bomba-relógio”^5 para as
    contas públicas.
    “Esses contratos estão no cruza-
    mento de diversas configurações con-
    temporâneas, sobretudo o discurso de
    crise do Estado de bem-estar social, o
    qual justifica que as políticas públicas


não sejam mais conduzidas pelo Esta-
do e suas administrações, mas delega-
das a um terceiro setor. Como ideia de
fundo, está a concepção de que o
mundo associativo estaria cheio de
amadores, enquanto o setor privado
seria mais eficiente e inovador”, anali-
sa Yannick Martell, membro do Insti-
tuto Godin, que realiza trabalhos de
pesquisa sobre inovação social e polí-
ticas públicas.
Os editais franceses apresentavam
os contratos de impacto social como
um dispositivo para “experimentar
um programa inovador de ações de
prevenção aos riscos sociais”. Para a
Adie, o desafio era superar a dificulda-
de de acessar pessoas em áreas remo-
tas: “Então, propusemos um financia-
mento totalmente a distância, com
entrevistas para a instrução de micro-
crédito por telefone e, paralelamente,
um acompanhamento físico de proxi-
midade”, orgulha-se Xavier Favre, res-
ponsável pela área operacional. “Che-
gamos até a dirigir um caminhão de
microcrédito nos Altos Alpes, levando
agentes institucionais locais até as
áreas mais afastadas”, acrescenta Oli-
vier. Fortalecer e personalizar o acom-
panhamento, adaptar-se ao contexto
sociogeográfico... Às vezes basta dizer
que um dispositivo é inovador para
que ele se pareça como tal. Como um
verniz mágico, essa novilíngua trans-
forma o velho improdutivo em novo
de alto desempenho. “No fundo, as in-
tervenções propostas nesses contra-
tos já são conhecidas há muito tempo.
Os trabalhadores da área social vivem
em um sistema no qual não podem fa-
zer aquilo que sabem ser eficaz, prin-
cipalmente por falta de recursos. En-
tão, exploram outras opções”, explica
a socióloga Ève Chiapello.
A retórica da inovação permite jus-
tificar a aparente transferência de risco


  • e sua remuneração: o poder público
    não deve mais investir em programas
    sociais que ainda não se provaram efi-
    cazes. “Essa historinha de que o Estado
    não deveria assumir ‘riscos’ tem uma
    força narrativa extremamente podero-
    sa”, observa Nicole Alix, presidente da
    Coop des Communs. Tão poderosa
    que alcançou o escalão mais alto do
    Palácio do Eliseu: “Financiar o que é
    eficaz me parece simplesmente lógico.
    Obrigatório, quando se trata de dinhei-
    ro público”, assume Christophe Itier,
    alto comissário para a Economia So-
    cial e Solidária e a Inovação Social, de-
    pois de participar da elaboração do
    programa presidencial de Macron. “A
    experiência dos contratos de impacto
    social na França se assenta em duas
    questões: testar um modo de financia-
    mento que provoque mudança nas po-
    líticas públicas voltadas à prevenção e
    sobretudo difundir a cultura do impac-
    to nas administrações territoriais e do
    Estado”, prossegue. Na verdade, o uso


@RIVA


@RIVA

Free download pdf