Le Monde Diplomatique - Brasil - Edição 147 (2019-10)

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34 Le Monde Diplomatique Brasil^ OU T U BRO 2019


dos contratos de impacto social parece
incentivar programas ou estruturas
que se mostraram eficazes, e o princi-
pal elemento de inovação está muito
mais no modo de financiamento do
que nos projetos em si.
Pouco a pouco, os conceitos e os
métodos de gestão de empresas priva-
das conquistam as administrações
públicas, que agora avaliam o desem-
penho das ações sociais em termos de
“impacto”. No Reino Unido, a empresa
da consultoria New Economy criou
uma base de dados de “custos sociais”,
em colaboração com o governo.^6 Ela
revela, por exemplo, que o custo de
cada aluno permanentemente evadi-
do do sistema escolar era de 13.450
euros anuais em 2006; que um sem-
-teto fixo “de longa duração” custava
9.200 euros para a autoridade local
responsável em 2011; que um adulto
sofrendo de transtornos mentais cus-
tava, em 2008, 2.544 euros ao sistema
de saúde inglês etc. A inserção de um
solicitante de asilo no mercado de tra-
balho, ao contrário, teria rendido
9.275 euros por ano em 2013. “Eu sem-
pre fui nerd!”, ri Marsland, enquanto
digita em busca de dados sobre os
sem-teto acompanhados em Brent. O
chefe do programa de ajuda aos sem-
-teto fixos de Londres – e de quatro
outros contratos de impacto social no
país – encarna essa nova gestão esta-
belecida na fronteira entre o setor pú-
blico e o privado.
A cultura do “impacto” foi primei-
ramente destilada nas finanças inter-
nacionais, depois nos novos métodos
de avaliação do impacto social, am-
biental e econômico das empresas.
Nos anos 2000, a noção de “retorno
social do investimento” apareceu no
jargão financeiro. “Nós criamos bases
de dados para subsidiar a tomada de
decisões das pessoas que investem di-
nheiro a distância, em empresas do
outro lado do mundo”, explica Alix.
Exemplos: o portal Novafi oferece um
mapeamento “das novas finanças, pa-
ra ajudar aqueles que desejam investir
suas economias”; o ImpactBase reúne
indicadores que medem “o desempe-
nho financeiro, operacional, ambien-
tal ou social de uma organização”. O
truque é, antes de mais nada, não con-
trariar esses indicadores...
Os contratos de impacto social uti-
lizam essas ferramentas de avaliação
financeira e reforçam as bases do pa-
gamento por resultados estabelecidas
na França pela lei de 2002 sobre a ação
social e médico-social. Com a diferen-
ça de que, no Reino Unido, esses con-
tratos pareciam ser mais flexíveis do
que os subsídios convencionais, mui-
to restritos. À frente da Crisis, uma das
duas instituições de caridade envolvi-
das no programa de Brent, Atara Fri-
dler está contente: “Eu vejo os efeitos
positivos nos resultados que estamos

obtendo, porque precisamos ser mais
responsáveis em nossa gestão. Além
disso, a Bridges Foundation tem valo-
res éticos com os quais concordo”.

O “CORAÇÃO INVISÍVEL”
DO MERCADO
Porém, considerando apenas os resul-
tados, o financiador ou o intermediá-
rio conseguem “manipular o mode-
l o”.^7 Foi o que fez o banco Goldman
Sachs, por exemplo. Em 2015, ele
anunciou o financiamento de um pro-
grama de pré-escola que ajudou 109
crianças “em risco” de Utah a evitar
sua internação em instituições espe-
cializadas. A taxa de sucesso próxima
de 99% – contra uma média de 10% a
20% para esse tipo de programa – dei-
xou um comitê de especialistas em
educação com a pulga atrás da orelha:
o Goldman Sachs utilizava um teste de
seleção que inflava demais as dificul-
dades iniciais das crianças...^8
“Nos últimos dez anos, os contra-
tos de impacto social foram a ferra-
menta que mais entusiasmou os go-
vernos”, afirma David Floyd, dirigente
de uma pequena empresa britânica.
Em abril de 2018, a primeira-ministra
Theresa May apoiou os projetos “pilo-
to” do plano nacional de redução do
número de desabrigados: um quarto
dos 40 milhões de euros públicos libe-
rados deveria ir para esse tipo de con-
trato. No papel, a prioridade era o “so-
cial”, buscando-se garantir que as
pessoas assistidas permanecessem
em suas casas por pelo menos oito
meses. O edital, no entanto, especifi-
cava que o programa selecionado se-
ria aquele com “as mais elevadas taxas
de custo-benefício”...
A ideia de que os mercados seriam
capazes de combinar prosperidade e
“retorno social” foi amplamente di-
fundida pelo empresário Ronald
Cohen, cabeça pensante da Big So-
ciety. Esse personagem, oriundo do
universo do capital de risco, logo se
aproximou dos círculos políticos: foi
candidato do Partido Liberal nas elei-
ções legislativas de 1974 e europeias
de 1979, antes de mudar, em 1996, pa-
ra o Partido Trabalhista de Tony Blair,
tornando-se, em 2004, um de seus
maiores financiadores. O “cavaleiro do
setor social com fins lucrativos”,^9 co-
mo é chamado pela imprensa econô-
mica, é considerado o pai do “investi-
mento social”. “Embora o distrito
financeiro de Londres conheça bem A
riqueza das nações e a ‘mão invisível
do mercado’, ele está menos familiari-
zado com outra obra de Adam Smith,
a Teoria dos sentimentos morais, e
aquilo que poderíamos chamar de ‘co-
ração invisível’ do mercado”, declarou
ele em um discurso famoso.^10
Na França, essa visão foi trazida
por uma fração muito ativa de perso-
nalidades oriundas do empreendedo-

rismo. “No universo da economia so-
cial e solidária, um pequeno grupo
adotou os códigos do mercado neoli-
beral e abriu seu próprio caminho”,
explica o pesquisador Michel Chau-
vière. Esses convertidos podem ser
vistos principalmente no Comité Na-
tional Consultatif sur l’Investissement
à Impact Social (CNCIIS, Comitê Con-
sultivo Nacional de Investimento de
Impacto Social), fundado em 2013 e
presidido por Hugues Sibille, então vi-
ce-presidente do Crédit Coopératif e
fundador do Collectif pour l’Entrepre-
neuriat Social [Coletivo para o Em-
preendedorismo Social].^11 Ministro da
Economia Social e Solidária de maio
de 2012 a março de 2014, Benoît Ha-
mon enviou Sibille para o grupo de
trabalho dos Estados do G8 sobre os
contratos de impacto social. Sibille
preparou um relatório,^12 entregue a
Carole Delga, que se tornou secretária
de Estado da Economia Social e Soli-
dária em junho de 2014. Mas ela não
se interessou pelos contratos de im-
pacto social, e a proposta ficou na ga-
veta até a chegada de Pinville ao go-
verno, em 2015.
Em 15 de março de 2016 foi lança-
do um edital. No dia 10 de junho, o
Impact Invest Lab (Iilab), um “labora-
tório” de investimento de impacto so-
cial, foi criado por um consórcio de
seis financiadores, entre eles Caisse
des Dépôts, Crédit Coopératif e Finan-
sol. “A ideia era criar uma estrutura
muito mais operacional para acompa-
nhar futuros líderes de projetos em
contratos de impacto social”, esclare-
ce Cyrille Langendorff, presidente do
Iilab e do CNCIIS. Eles puderam con-
tar com uma nova ferramenta france-
sa de “medição e monitoramento do
impacto social”, a Mesis. Criada pelo
fundo de investimento NovESS, ela é
financiada pelo Grupo BNP Paribas
e... pela Caisse des Dépôts.
O Iilab levou sua expertise à asso-
ciação Médecins du Monde [Médicos
do Mundo]. Embora o próprio princí-
pio dos contratos de impacto social
tenha sido fortemente criticado den-
tro da entidade, no dia 5 de maio ela
assinou um contrato para criar uma
alternativa ao internamento, a fim de
garantir moradia e acompanhamento
intensivo de pessoas com distúrbios
psiquiátricos. “Fomos informados de
que nosso projeto era compatível com
o edital e, para nós, acabou sendo
uma oportunidade de encontrar di-
nheiro para colocá-lo em prática”,
conta o psiquiatra Thomas Bosetti,
que insiste na dificuldade de ajudar a
população altamente dessocializada
com a qual trabalha. Prevendo benefi-
ciar cem pessoas, o projeto requer a
colaboração de cinco ministérios e
pode chegar a 6,6 milhões de euros.
“Foram reunidos atores que não ne-
cessariamente têm o hábito de traba-

lhar juntos e que, para a ocasião, de-
bruçaram-se sobre uma mesma
problemática relacionada à preven-
ção. É isso que torna o campo tão se-
dutor”, observa Raphaëlle Sebag, dire-
tora-geral do Iilab.
Inovação? O Haut Conseil à la Vie
Associative (HCVA, Alto Conselho pa-
ra a Vida Comunitária) aponta o risco
de que os financiadores sejam “tenta-
dos a apoiar apenas projetos facil-
mente avaliáveis, em detrimento da-
queles cuja avaliação seria mais
qualitativa”.^13 Além disso, ocorre uma
seleção de fato entre pequenas e gran-
des associações. Muitas estruturas pe-
quenas não conseguiriam se qualifi-
car para esse tipo de contrato. “Apenas
para a preparação do contrato, foi ne-
cessário mobilizar o equivalente a um
período integral durante um ano”, es-
pecifica Olivier, o diretor financeiro da
Adie. Quanto mais partes interessadas
existirem, mais complexos serão os ar-
ranjos legais e financeiros. “As discus-
sões com o Estado e com os financia-
dores nos permitirão construir um
modelo preciso, no qual poderemos,
por exemplo, quantificar o número de
internamentos a serem evitados, a fim
de tornar o projeto rentável em ter-
mos de investimento”, confirma Bo-
setti. O objetivo principal, no momen-
to de amarrar os contratos, continua
sendo a modulação do risco – sobretu-
do para o investidor. “Sempre há algu-
ma incerteza, pois estamos montando
um programa que ainda não foi testa-
do. Mas, em alguns casos, precisamos
trazer os poderes públicos e os opera-
dores de volta à terra: em vez de nos
recusarmos a financiar, trabalhamos
para chegar a um projeto menos arris-
cado, ou negociamos a fim de adicio-
nar algum tipo de ‘prêmio’ de risco
adicional”, admite o financiador do
projeto SHPS, Marsland.

UM FUTURO INCERTO
Essa noção de risco parece, de fato,
bastante relativa. Um relatório de 2016
elaborado pela Organização para a
Cooperação e o Desenvolvimento
Econômico (OCDE)^14 observou que
apenas um “investidor” não teve seus
custos cobertos, no primeiro contrato
de impacto social lançado nos Estados
Unidos em 2012, que se propunha a
reduzir a taxa de reincidência dos
egressos de uma prisão de Nova York.
O contrato especificava que o finan-
ciador, o Goldman Sachs, seria total-
mente reembolsado se a taxa de rein-
cidência caísse 8,2%. Apesar do
fracasso do programa, o banco conse-
guiu recuperar US$ 6 milhões dos 7,2
milhões investidos porque seu inves-
timento também era garantido em
75% pela fundação Bloomberg
Philanthropies.
Na França, o primeiro contrato de
impacto social também ofereceu ga-

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