Le Monde Diplomatique - Brasil - Edição 147 (2019-10)

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36 Le Monde Diplomatique Brasil^ OU T U BRO 2019


UM PARTIDO APAIXONADO POR BRUXELAS E PELA CITY


No Reino Unido, os liberais pró-europeus se encontram há anos em uma situação nova: nenhum dos
dois grandes partidos endossa suas preferências. Os conservadores de Boris Johnson querem deixar
a Europa; os trabalhistas de Jeremy Corbyn defendem os direitos dos assalariados. Daí o renovado
interesse da mídia privada por um partido um pouco esquecido

POR RICHARD SEYMOUR*


P


aremos o Brexit!”: esse era o
lema dos liberal-democra-
tas britânicos na campa-
nha para as eleições euro-
peias de maio de 2019.^1 Nesse
escrutínio, o terceiro maior partido
do país tentou recuperar o prestígio
após o desastre que foi sua participa-
ção no governo do conservador Da-
vid Cameron, entre 2010 e 2015.
Faz muito tempo que os liberais
democratas tentam reconfigurar o es-
paço político do reino. Sua ambição?
Erigir-se em equivalente britânico do
Partido Democrata norte-americano,
uma formação centrista próxima dos
meios empresariais. A campanha con-
tra o Brexit lhes dá a possibilidade de
ultrapassar a dicotomia direita-es-
querda e aliciar os descontentes de to-
dos os tipos, mas sua estratégia parla-
mentar não mostra clareza.
Assim, desde o referendo do Brexit
em 2016, os “Lib Dems” participaram
do bloqueio do Parlamento, opondo-
-se a qualquer proposta que tratasse
de organizar uma segunda consulta.
Ao mesmo tempo, selaram “pactos de
não agressão” com os deputados con-
servadores, inclusive os favoráveis ao
Brexit, como Rory Stewart, e acolhe-
ram em suas fileiras representantes da
direita menos liberal, como Phillip
Lee, contrário ao casamento homosse-
xual e hostil aos imigrantes. Tudo leva
a crer, portanto, que estariam dispos-
tos a fazer uma aliança com os Tories,
cuja maioria, no entanto, defende o
Brexit, mas não com o Labour, favorá-
vel a um segundo referendo. “Nada
pior que uma saída sem acordo!”, não
param de repetir, mas descartando a
solução mais simples para impedi-la:
um voto de desconfiança contra John-
son, que levaria à nomeação de um go-
verno interino chefiado pelo líder da
oposição, Jeremy Corbyn.
Seria difícil entender essas revira-
voltas se não considerássemos outra
prioridade dos Lib Dems, que presi-
diu seu nascimento e coexiste com a
da permanência no seio da União Eu-
ropeia: barrar o caminho da esquer-
da radical.

CONTRA OS TRABALHISTAS
O Partido Liberal Democrata se en-
raíza em dois terrenos distintos: por

na e substituído por um jovem de
sangue azul capaz de se expressar em
cinco línguas: Nicholas Clegg. A for-
mação saiu então a campo contra o
Partido Trabalhista, atacando pelo
f lanco direito.
Insensível à crise dos subprimes,
que no entanto parecia desnudar o
fracasso do fundamentalismo de
mercado, Clegg publicou em 2009
um panf leto intitulado The Liberal
Moment [A hora do liberalismo], no
qual se empenhava em fustigar o po-
der absoluto de um Estado “distante
das exigências de nossa época”. Ven-
do que a mensagem – já martelada
pelo New Labour – não suscitava en-
tusiasmo, o partido abordou as elei-
ções gerais de 2010 com um progra-
ma o menos político possível,
limitando-se a denunciar as “pro-
messas não cumpridas” dos locatá-
rios anteriores do número 10 da Do-
wning Street. “Nos últimos anos,
houve promessas não cumpridas de-
mais”, alegou Clegg em uma propa-
ganda de campanha. “Nosso país es-
tá cheio delas. [...] Acho que é hora de
mudar isso. Acho que é hora de lutar
pela justiça. Acho que é hora de cum-
prir promessas.”^2

O curinga dos britânicos pró-Europa


um lado, os vestígios do antigo Parti-
do Liberal, que dominou a política
britânica no século XIX, mas foi en-
fraquecido pela criação do Labour
em 1900; por outro, uma fração da di-
reita do Partido Trabalhista, que se
separou no início dos anos 1980, na
virada à esquerda de sua formação –
figuras liberais, atlantistas e favorá-
veis à energia nuclear que, em 1981,
fundaram o Partido Social-Democra-
ta (SDP, na sigla inglesa).
O SDP e os Liberais concluíram
rapidamente uma aliança. Juntaram-
-se na esperança de contribuir para a
integração europeia, a defesa das ar-
mas nucleares, o descrédito dos no-
vos movimentos sociais e a crítica à
luta contra o racismo – em suma, pa-
ra a rejeição daquilo que chamam de
“esquerda delirante” (loony left). Mas
a parceria foi cimentada, antes de tu-
do, por sua oposição ao sindicalismo
militante, posicionamento que os
torna perfeitamente compatíveis
com a mentalidade britânica atual.
Com efeito, Margaret Thatcher aca-
bava de ser eleita com a promessa de
quebrantar as organizações operá-
rias que, segundo ela, entravavam a
modernização da indústria.
Quando a Dama de Ferro travou o
combate contra os grevistas da União
Nacional dos Mineiros (NUM), em
1984, a “Aliança” escolheu seu cam-
po. Segundo o dirigente liberal David
Steel, o sindicalista Arthur Scargill,
mentor da greve, só queria “ampliar o
império marxista”. De seu lado, o lí-
der do SDP tentou assustar o reino
lembrando que Scargill tinha sido
“um membro ativo do Partido Comu-
nista”. A jovem formação social-de-
mocrata votou uma moção de apoio
aos furadores de greve e deu um pu-
xão de orelha no governo, considera-
do muito brando na repressão ao
movimento.
As eleições gerais de 1983 assina-
laram o apogeu da Aliança, que con-
quistou 25,4% dos votos. Quando os
dois partidos se fundiram em 1988
para formar os Lib Dems, puderam se
vangloriar da base social de que os
trabalhistas precisavam para chegar
ao poder. Com Tony Blair à frente do
Labour, em 1994, e a virada neolibe-
ral deste último – falava-se então de

“Novo Trabalhismo” –, a convergên-
cia ficou mais fácil. Blair vislumbrou
uma parceria entre as duas forma-
ções e chegou a sugerir, por ocasião
das comemorações do centenário do
Partido Trabalhista (fevereiro de
2000), que a criação do Labour fora
um equívoco, pois dividira a maioria
progressista.
No entanto, a aproximação fra-
cassou e os Lib Dems reagiram à di-
reitização do Partido Trabalhista, to-
mando o rumo da esquerda. Sob a
batuta de Charles Kennedy, não hesi-
taram em se opor a Blair, principal-
mente após o 11 de Setembro, no ca-
so da intervenção no Iraque e da
restrição das liberdades individuais,
medidas justificadas pela “guerra
contra o terror”. Conseguiram até,
no contexto das eleições gerais de
2005, expulsar o Labour de alguns de
seus redutos tradicionais, como
Manchester, Leeds, Cardiff, Bristol e
Londres.
Contudo, a linha moderada de
Kennedy não satisfazia a ala direita,
particularmente irritada com seu ve-
to à proposta de privatização do Cor-
reio britânico (Royal Mail). Em 2007,
ele foi afastado por uma cabala inter-

“Paremos o Brexit!” era o lema dos liberal-democratas britânicos na campanha
para as eleições europeias de maio de 2019

Robert Mandel, UK

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