Le Monde Diplomatique - Brasil - Edição 147 (2019-10)

(Antfer) #1

8 Le Monde Diplomatique Brasil^ OU T U BRO 2019


ENTREVISTA – CHRISTOPHER NEWFIELD


A transformação das universidades públicas norte-americanas em mais uma modalidade de negócios foi um “grande
erro”, afirma professor da Universidade da Califórnia com livro sobre o tema

POR PEDRO FIORI ARANTES*

E


nquanto no Brasil o governo fe-
deral pretende que as universi-
dades terceirizem sua gestão e
mesmo as atividades-fim sob co-
mando de organizações privadas (OS),
passem a depender cada vez mais de
fundos de mercado, dirijam seus es-
forços para o empreendedorismo e
ampliem a arrecadação própria com
doações, cobranças de taxas e, futura-
mente, de mensalidades (como já de-
manda o Banco Mundial em seu últi-
mo documento sobre o país), nos
Estados Unidos, onde tudo isso já foi
feito, o resultado foi amplamente ne-
gativo. A avaliação é de Christopher
Newfield, professor da Universidade
da Califórnia (a maior e mais presti-
giosa universidade pública norte-a-
mericana) que lançou recentemente o
livro The Great Mistake: How We Wrec-
ked Public Universities and How We
Can Fix Them (“O grande erro: como
arruinamos as universidades públicas
e como podemos recuperá-las”, Johns
Hopkins University Press, 2016). Na
entrevista a seguir, ele demonstra que
a política neoliberal para as universi-
dades norte-americanas foi também
lá, no modelo original, um desastre.

■ LE MONDE DIPLOMATIQUE BRA-
SIL – Nas últimas décadas, enfrenta-
mos um discurso dominante que co-
lonizou o senso comum ao afirmar
que as universidades devem fazer
“entregas rápidas”, focadas em “re-
sultados”, ser cada vez mais concebi-
das de acordo com modelos de negó-
cios, produzir conhecimento como
mercadoria e educar profissionais
para ganhos privados. Alguma parte
da ideia de “universidade” se perdeu
ao longo do caminho?
➤ CHRISTOPHER NEWFIELD – Isso
não se perdeu, foi deliberadamente en-
terrado. As universidades fazem várias
coisas que nenhuma outra instituição
faz. Elas criam conhecimento como
parte do mesmo processo pelo qual o
espalham – a pesquisa é tão importan-
te quanto o ensino. A pesquisa e o ensi-
no universitário são autodirecionados
e, quando as universidades estão fun-
cionando corretamente, são exemplos
de uma autogestão que é muito difícil

de alcançar em um local de trabalho
comum. O resultado desejado é triplo:
o desenvolvimento pessoal-intelectual
combinado do aluno (o que a tradição
teórica prussiana chamou de Bildung);
um novo conhecimento sobre todos os
tópicos do planeta; e a prática do co-
nhecimento como um processo total-
mente social. Esta última não é bem
compreendida, mas coloca o aprendi-
zado e a pesquisa fora das estruturas de
mercado. Nos últimos cinquenta anos,
as empresas e seus aliados políticos
tentaram controlar as universidades,
por razões que não são tão diferentes
das da Igreja Católica ou do Estado bo-
napartista em outras épocas.

■ Você apresenta uma imagem im-
pressionante do desmantelamento
das universidades públicas dos Esta-
dos Unidos e sua transformação em
meros prestadores de serviços, orien-
tada para o mercado. O que motivou
essa transformação e em que mo-
mento histórico o ataque às universi-
dades públicas dos Estados Unidos e
a sua missão pública fundamental
começou?
➤ O motivo, em uma frase, era blo-
quear as ameaças aparentes das uni-
versidades aos poderes econômicos e
políticos estabelecidos. Um momento
decisivo foi a campanha de Ronald
Reagan para governador da Califórnia
em 1966. Seu oponente, o então ocu-
pante do cargo Pat Brown, era um pro-
gressista popular do New Deal que
construía obras e serviços públicos
para pessoas comuns (brancas). Elei-
tores gostam de escolas, rodovias, hos-
pitais, pontes e faculdades gratuitas;
Reagan decidiu que não poderia con-
correr contra Brown, mas poderia con-
correr contra manifestantes estudan-
tis de esquerda na UC Berkeley, e foi
isso que ele fez. Ele derrotou Brown,
em parte, apresentando as universida-
des de Brown como lugares que ence-
navam ataques a norte-americanos
respeitáveis e tementes a Deus, que re-
verenciavam o sistema de livre-co-
mércio. Um segundo evento impor-
tante ocorreu em 1970, quando o
futuro juiz da Suprema Corte, Lewis
Powell, então um moderado juiz repu-

nheiro com subsídios de pesquisa pa-
trocinados e ganham muito pouco
para operações gerais da filantropia.
O preço social assume várias formas:
as universidades têm problemas fi-
nanceiros, os estudantes pagam de-
mais e assumem dívidas educacionais
e a sociedade recebe menos benefí-
cios não monetários porque o ensino
e a pesquisa gravitam em torno de as-
suntos monetizáveis. Observe tam-
bém que os estudantes que possuem
altas dívidas educacionais desejam
uma renda mais alta para pagá-las.
Eles são menos capazes de seguir seus
compromissos políticos ou éticos no
serviço social, uma vez que os salários
mais baixos desses empregos dificul-
tam o pagamento da dívida da
universidade.

■ A missão e o amplo espectro de ca-
pacidades humanas da universidade
estão diminuindo cada vez mais para
formar Homo economicus, ou seja,
animais de mercado?
➤ A pesquisa é um bem público bási-
co. Uma nova ideia ou descoberta não
tem valor de mercado. Isso ocorre ape-
nas mais tarde, com o desenvolvimen-
to comercial, se é que ocorrerá. Desco-
brir algo novo não pode ser incentivado
pela expectativa de um retorno de
mercado incerto, remoto ou inexisten-
te. As universidades existem em gran-
de parte para apoiar a exploração que
não dará dinheiro. E ninguém pode
ser um bom pesquisador enquanto
opera como Homo economicus: o “ani-
mal de mercado” sempre busca retor-
nos monetários, e não benefícios não
monetários ou que agregam à multi-
dão, e não ao pesquisador ou empresa.
Isso vale especialmente para as disci-
plinas de artes e humanas, nas quais
um relato melhor da relação entre es-
cravidão e capitalismo na década de
1820 tem um valor intrínseco e prova-
velmente político, mas não traz di-
nheiro. As disciplinas de engenharia e
ciências aplicadas são exceções par-
ciais. Mesmo assim, o dinheiro real se-
rá ganho por laboratórios corporativos
focados no desenvolvimento de pro-
dutos, não nas universidades que ex-
ploram conceitos fundamentais.

blicano da Virgínia, enviou um longo
memorando à Câmara de Comércio,
pedindo às empresas que lutassem
contra o sentimento anticapitalista
alojado nos campi das universidades.
Suas sugestões para financiar pesqui-
sadores e think tanks que criariam e
difundiriam visões conservadoras aju-
daram a construir as redes políticas
conservadoras que ainda dominam a
política local.

■ Em seu livro, você diz que, durante
25 anos, trabalhou em um lugar pri-
vilegiado, testemunhando o esforço
contínuo de tornar a universidade
pública mais parecida com uma em-
presa. Você pode explicar melhor co-
mo isso aconteceu e o preço social pa-
go por essa privatização indireta?
➤ Nas décadas de 1980 e 1990, os ge-
rentes das universidades aceitaram o
novo argumento de consenso – tanto
dos conservadores de Reagan quanto
dos centristas de Clinton – de que
bens como o ensino superior tinham
benefícios fundamentalmente priva-
dos e não públicos, devendo assim ser
pagos em particular. Quando comecei
a trabalhar em comitês de planeja-
mento e orçamento depois de 2000,
fiquei surpreso com a perda de con-
fiança no modelo de financiamento
público e com a fé cega de que os con-
tratos de filantropia e pesquisa torna-
riam as universidades públicas bem-
-sucedidas como suas contrapartes
privadas. Isso criou dois problemas. A
primeira foi que as universidades en-
fraqueceram sua reivindicação pelos
altos níveis de financiamento público
de que desfrutavam anteriormente.
Se a graduação da universidade serve
para aumentar os salários individuais,
em vez de promover a sociedade, o
público não precisa pagar o custo da
educação por meio de impostos. Essa
visão está incorreta: a maioria dos
efeitos do ensino superior é não pecu-
niária, ou social, ou ambos. O segun-
do problema é que as universidades
não ficam realmente ricas com fun-
dos privados. Elas se tornam depen-
dentes da renda proveniente da men-
salidade do estudante, que agora
atingiu seu limite. E elas perdem di-

Como os Estados Unidos arruinaram


suas universidades públicas


@RIVA


@RIVA

Free download pdf