Le Monde Diplomatique - Brasil - Edição 147 (2019-10)

(Antfer) #1

OUTUBRO 2019 Le Monde Diplomatique Brasil 9


■ Ainda assim, você demonstra que é
uma falácia pensar que as universida-
des são apoiadas por recursos corpo-
rativos. Elas ainda são amplamente
subsidiadas pelo governo, mensalida-
des e patrocínios. Sendo assim, por que
o mercado está definindo cada vez
mais as premissas e os resultados do
ensino e das pesquisas?
➤ Um dos mitos da privatização a
meio caminho era que, se os acadêmi-
cos fizessem um trabalho melhor na
comercialização de suas pesquisas, o
dinheiro corporativo chegaria. As uni-
versidades agora divulgam incessan-
temente suas start-ups e objetivos co-
merciais, mas o dinheiro nunca
chegou. Na realidade, o financiamen-
to corporativo representa entre 5% e
7% do total das despesas de pesquisa
nas universidades norte-americanas
há décadas; isso nunca substituiu os
fundos federais.

■ Você diz que as universidades pú-
blicas dos Estados Unidos eram em
sua maioria gratuitas, até começarem
a cobrar uma taxa simbólica, e pro-
gressivamente esse valor aumentou
de modo exponencial para compen-
sar o investimento público em queda e
as políticas de austeridade. Isso levou
novamente a uma elitização do aces-
so. Isto é, o que pagou a conta para re-
duzir o orçamento público, no final,
foram os próprios alunos e suas famí-
lias, e não as empresas privadas, como
é propagado?
➤ Você está certo – os estudantes e
suas famílias cobriram o financia-
mento público que os estados retira-
ram. O efeito mais visível é a dívida
estudantil, que atingiu US$ 1,6 trilhão
nos Estados Unidos. Aumentou muito
mais rapidamente do que a renda ne-
cessária para atendê-la; mais de 10%
dos empréstimos estudantis estão em
inadimplência. Desde 1993, o finan-
ciamento estatal diminuiu 25% (cor-
rigido pela inflação), enquanto as
mensalidades líquidas (o valor que os
alunos pagam do bolso após a aplica-
ção de toda a ajuda financeira) dobra-
ram. Isso sugere como a privatização
é ineficiente.

■ Nos últimos quinze anos, nos Esta-
dos Unidos, o montante transferido
para as universidades privadas pas-
sou de US$ 4,6 bilhões para US$ 26
bilhões por ano. Como o lobby priva-
do funciona para capturar fundos
públicos?
➤ As faculdades com fins lucrativos
têm as taxas mais baixas de graduação
e emprego do país, com o custo mais
alto para os alunos. Como no Brasil,
elas existem apenas porque o governo
federal concede empréstimos aos es-
tudantes para que paguem as mensa-
lidades para frequentá-las. O governo
teve de aprovar uma regra de que não

mais que 90% de sua receita total deve
vir de empréstimos estudantis conce-
didos pelo governo, ou a maioria delas
teria conseguido 100% de seu dinhei-
ro dessa maneira. São as piores insti-
tuições de ensino superior da história.
Não caia na alegação de que ampliam
o acesso de estudantes pobres e de
primeira geração! Como no Brasil, elas
transmitem dívidas às pessoas pobres,
não conhecimento.

■ No final do livro, você refuta as afir-
mações de que não haveria alternati-
va (Tina, no jargão neoliberal de
Thatcher), de que não há mais recur-
sos públicos e de que o que aconteceu
era inevitável “como as leis da física”.
Você poderia resumir aqui seus conse-
lhos para “consertar isso”, como você
diz ironicamente?
➤ Desde que eu escrevi The Great Mis-
take, duas de suas principais soluções
se tornaram parte do debate nacional.
Muitos candidatos políticos democra-
tas, liderados por Bernie Sanders e Eli-
zabeth Warren, estão clamando por
uma faculdade gratuita e pelo alívio da
dívida estudantil. Os estudantes de
baixa renda precisam ter suas despe-
sas de moradia pagas, bem como to-
dos os gastos educacionais. Os Esta-
dos Unidos tornaram o ensino médio
gratuito no século XIX. Fizemos o mes-
mo para as universidades no século
XX. De fato, vamos reverter o modelo
de alto custo para as universidades
públicas. É só uma questão de tempo.

■ Qual mensagem você gostaria de
enviar aos brasileiros, considerando
que o governo Bolsonaro está redu-
zindo violentamente os recursos das
universidades públicas e agora está
apresentando um projeto para a pri-
vatização indireta?

➤ Três mensagens: seu modelo de
ensino superior para o desenvolvi-
mento social está certo. Seu modelo
de ensino gratuito está certo, porque
é a única maneira de ter acesso de-
mocrático. Se você cobra mensalida-
des que estabelecem barreiras de
custo e restringem a alocação de bens
educacionais (que é o que os merca-
dos fazem bem), seu sistema univer-
sitário não será democrático – au-
mentará as desigualdades sociais em
vez de reduzi-las. Segundo, não acre-
dite que as universidades privatiza-
das serão mais ricas e mais estáveis:
elas não serão. A maioria será mais
pobre e dedicará mais dinheiro para
angariar fundos. Terceiro, podemos
proteger e promover as universidades
como locais de formas autogoverna-
das de produção pós-capitalista. A
ciência e os estudos avançam quando
ideias e recursos são amplamente
compartilhados. Dessa maneira, as
universidades públicas reais espe-
ram um mundo democrático e sus-
tentável. Elas precisam de grande
apoio e amor público.

■ Estão crescendo no Brasil e em ou-
tros países, que formam uma nova in-
ternacional de ultradireita, um claro
projeto de poder baseado na desin-
formação e na intolerância, contrá-
rio ao esclarecimento e às evidências
científicas e históricas. Como você en-
tende o papel das universidades nesse
contexto?
➤ As crises políticas e ecológicas do
mundo também são crises de conhe-
cimento. Líderes autocráticos destru-
tivos, como Trump, Putin, Modi, Er-
dogan, Duterte e Bolsonaro, abrem
caminho para suas políticas insistin-
do que não há evidências ou argu-
mentos válidos contra suas posições e

fingem provar isso com ataques a dis-
ciplinas ou pesquisadores. Eles apre-
sentam falsamente o fundamentalis-
mo religioso e a civilização produtora
de carbono como sendo vontade do
povo, enquanto lotam as instituições
com seus próprios partidários. Trump
nomeia juízes que se opõem categori-
camente aos direitos reprodutivos e à
igualdade sexual das mulheres, assim
como regulamenta uma técnica pre-
datória de extração de energia etc. Re-
ceio que nosso presidente tenha agra-
vado os problemas, como Bolsonaro
no Brasil, ao estabelecer um ataque
ao conhecimento e suas instituições.
Todas essas figuras percebem que as
universidades oferecem análises in-
dependentes que podem expor a in-
tencionalidade de suas posições e
oferecer conhecimento para funda-
mentar o dissenso em relação a elas.
Essas figuras neocoloniais e antide-
mocráticas, portanto, se opõem à li-
berdade acadêmica e ao conhecimen-
to popular ou do ponto de vista, e o
fazem alegando que elas incorporam
a sabedoria superior das pessoas co-
muns. Na realidade, ao longo dos
anos, a universidade, mesmo com
suas falhas, fez muito mais por pes-
soas comuns do que esses líderes fa-
zem. Elas fizeram isso em parte
aprendendo com a própria sociedade
e oferecendo a criação de conheci-
mento independente a serviço de to-
dos. Por isso, são mais importantes
para as sociedades democráticas do
que nunca, e espero que as universi-
dades públicas e os movimentos so-
ciais brasileiros agora se apoiem mu-
tuamente, com foco e determinação.

*Pedro Fiori Arantes é arquiteto e urba-
nista, professor da Unifesp e pró-reitor de
Planejamento.

Christopher Newfield demonstra que a política neoliberal para as universidades norte-americanas foi um desastre

Divulgação

@RIVA


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