JOSÉ EDUARDO AGUALUSA - O POETA ASSASSINO
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Jornal O Globo/Nacional - Segundo Caderno
sábado, 28 de maio de 2022
Cenário Político-Econômico - Colunistas
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Ontem, dia 27 de maio, cumpriram-se 45 anos desde o
evento mais traumático da história de Angola - uma
tentativa de golpe de Estado contra o então presidente
Agostinho Neto. Este respondeu de forma brutal,
ordenando a prisão e o fuzilamento de um largo número
de presumíveis desafetos políticos no seio do seu
próprio partido, o Movimento Popular para a Libertação
de Angola, MPLA. Acredita-se que durante essa vaga
de cruel e violentíssima repressão terão morrido entre
30 a 50 mil pessoas.
Um filme que acaba de chegar às salas de cinema em
Portugal, 'Sita -A vida e o tempo de Sita Vales', dirigido
por Margarida Cardoso, revisita esses dias de intenso
terror, focando na figura de uma jovem estudante de
Medicina, Sita Valles, que, depois de ajudar a fazer a
Revolução de Abril em Portugal, retornou ao seu país.
Em Luanda, Sita juntou-se à ala esquerdista, pró-
soviética, do MPLA, encabeçada por Nito Alves e José
Van Dunem -como o qual viria a casar.
Margarida Cardoso entrevistou antigos presos políticos,
bem como amigos e familiares de Sita Valles.
Conseguiu, além disso, reunir imagens e filmes privados
de Sita, mostrando-a ainda criança, na época colonial,
e, mais tarde, em Portugal e em Angola, durante
comícios e reuniões de estudantes. O resultado é um
testemunho extremamente perturbador e, em alguns
momentos, muito comovente, como quando se vê Sita
brincando com o filho recém-nascido. Meses depois,
José e Sita seriam forçados a entregar o bebê à avó
paterna, antes de abandonarem Luanda, buscando
refúgio em aldeias de camponeses, numa fuga
desesperada e inútil, que terminaria com a sua prisão e
fuzilamento, após longas sessões de tortura.
O atual presidente angolano, João Lourenço, cuja
esposa, Ana Lourenço, também foi presa em 1977, já
pediu perdão, em nome do aparelho de Estado, pelos
inúmeros crimes cometidos na época. Lourenço
prometeu também entregar os restos mortais dos
desaparecidos às respetivas famílias.
A imagem de Agostinho Neto sai muito chamuscada do
filme de Margarida Cardoso. Até há poucos anos, Neto
era uma figura intocável em Angola -o grande herói
nacional. Nos últimos tempos, contudo, têm sido
publicados, quer em Angola, quer em Portugal, dezenas
de testemunhos de antigos presos políticos, e de
sobreviventes dos massacres de maio de 1977, além de
extensos ensaios históricos, que implicam o antigo
presidente, de forma direta, em todo o processo de
repressão.
Num famoso discurso, no próprio dia 27 de maio de
1977, Agostinho Neto chegou a dizer que as
autoridades angolanas não iriam 'perder tempo com
julgamentos'. Cumpriu a promessa: nenhum dos presos
foi julgado. Os sobreviventes só foram libertados após a
morte de Agostinho Neto, a 10 de setembro de 1979,
por decisão do homem que o substituiu, José Eduardo
dos Santos.
No ano em que se comemora o centenário do
nascimento de Agostinho Neto, a 17 de setembro,
convém recordá-lo nas suas diversas facetas: como um
combatente pela independência e poeta bissexto, de