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Banco Central do Brasil

Revista Veja/Nacional - Colunistas
sexta-feira, 27 de maio de 2022
Cenário Político-Econômico - Colunistas

sociedades meritocráticas”. O truque é fazer acreditar
que de fato alguém defenda a ideia esdrúxula de que,
em uma economia de mercado, o sucesso é definido
pelo mérito pessoal. Isso é uma bobagem. Não há uma
régua para definir ou medir o que significa mérito
individual. O mercado remunera o valor, não o mérito.
As pessoas compram celulares da Apple não por
reconhecer o talento de Steve Jobs, mas pela boa
relação custo-benefício de seus produtos. No mais, é
perfeitamente plausível que alguém faça sucesso, ou
fique milionário, simplesmente por um lance de sorte. O
sujeito pode ganhar na loteria, por exemplo, ou herdar 1
milhão de dólares de uma tia distante. Simplesmente
não há como separar o que é resultado do esforço ou
do acaso.


Isso não significa que o esforço, a disciplina e a
capacidade de renúncia não sejam decisivos para o
sucesso. Reside aí o paradoxo do mérito. Tyler Cowen
e Daniel Gross observam que nos EUA, de 1980 a
2000, o grau de escolaridade explicava 75% da
desigualdade de salários; nas últimas duas décadas,
esse porcentual caiu para 38%. As diferenças de
ganhos surgem majoritariamente dentro dos grupos de
mesmo padrão educacional. O que vai fazendo a
diferença são precisamente aspectos ligados ao mérito
e ao talento. A capacidade de alguém apresentar uma
performance superior, pela capacidade de inovar ou de
trabalhar duro, mesmo competindo com pessoas com a
mesma base educacional. Há algo associado ao fator
humano, à “capacidade de perseverar em objetivos de
longo prazo”, como define a psicóloga Angela
Duckworth, fazendo a diferença na vida das pessoas. E
é simplesmente um erro fazer de conta que essas
coisas não existem, quem sabe para não destoar da
multidão barulhenta.


O desafio é cultivar uma visão inclusiva do mérito. Em
vez de renunciar ao princípio das “carreiras abertas ao
talento”, crucial na formação moderna, deveríamos
andar para a frente. Assegurar que cada um tenha
direito a uma base de oportunidades iguais. A igualdade
pura e simples de oportunidades não passa de uma


miragem. Seria preciso separar os filhos das famílias,
impor a todos a mesma educação e, por fim, equalizar a
sorte e o azar. O segredo é focar no que Harry Frankfurt
chamou de “suficiente”. Isso pode significar muitas
coisas, mas todos concordariam com o pacote básico,
que inclui uma sociedade aberta, feita de direitos iguais
e uma boa educação. Educação que realmente faça a
diferença, colocando alunos de menor renda nas
mesmas escolas, ou ao menos em escolas similares,
onde estudam os alunos de maior renda. Curiosamente,
o que nossa elite atrasada não quer nem ouvir falar.

Assegurado o básico, são as escolhas de cada um que
devem fazer a diferença. Na prática, a famosa frase de
Obama: “Se você tentar, você pode conseguir”. Meu
amigo Sandel achou a frase um insulto. Acha que ela é
ofensiva para os que não conseguiram chegar lá. Fico
com Obama. Se alguém falhou (e quem nunca?), deve
ter a chance de aprender e voltar ao jogo. Essa ideia
contém um claro sentido ético: desejamos não apenas
ter sucesso, mas saber que somos autores do caminho
pelo qual trilhamos. E talvez seja por aí que se mova
uma boa sociedade. Aquela que não trate as pessoas
como “vítimas das circunstâncias”, como diz
Wooldridge.

Para uma visão inclusiva do mérito, sugiro prestar
atenção à hipótese de Howard Gardner, psicólogo de
Harvard, de que a inteligência humana é múltipla. Ele
identificou nove grandes campos, que vão da
inteligência lógico-matemática à inteligência
interpessoal. Neymar pode não se interessar muito por
filosofia, mas sua capacidade corporal-cinestésica é
constrangedoramente melhor que a minha. A tese de
Gardner recupera a velha ideia iluminista de que todos
somos capazes. E que é preciso acreditar um pouco
mais nas pessoas. Apostar que, recebendo a chance
devida, as pessoas saberão voar muito mais alto do que
nossos preconceitos permitem imaginar.

É o que diz Ken Robinson, o grande educador inglês.
Ele conta a história de uma “menina-problema” na
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