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(Antfer) #1

Leandro Karnal - Gente como a gente


Banco Central do Brasil

Jornal O Estado de S. Paulo/Nacional - Cultura &
Comportamento
Sunday, May 29, 2022
Cenário Político-Econômico - Colunistas

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Autor: Leandro Karnal


Quem conhece narrativas bíblicas sabe que as pessoas
do texto são muito marcadas pela ambiguidade. Na
Idade Média dominou a narrativa modelar sobre os
santos, as chamadas hagiografias. Os eleitos eram
perfeitos desde o berço, nunca tremiam, jamais
duvidavam. No texto bíblico, pelo contrário, as pessoas
são reais. Abraão mente ao faraó que sua esposa seria
sua irmã; um irmão engana o pai com ajuda da mãe
(Jacó com o idoso Isaac); o encarregado do culto a
Deus, Aarão, é quem cede ao povo e faz o bezerro da
idolatria; e, apenas para dar outro exemplo, Jonas fica
decepcionado que Deus não destruiu a cidade de
Nínive. Existem narcisos feridos, jogos de poder,
tramóias e estratégias pessoais. Vale o mote de
Nietzsche: humano, demasiado humano.


O encontro do jovem Davi e o gigante Golias é narrado
no capítulo 17 do Primeiro Livro de Samuel. Usando da
habilidade com sua funda, o rapaz acerta o guerreiro
enorme e o mata. Depois, de-cepa sua cabeça.
Juntamente com o episódio de Judite /Ho-lofernes e
Salomé/João Batista, são três cenas fortes de gente


perdendo a cabeça na Bíblia para deleite da história da
arte.

Quase sempre, Davi é representado como um
adolescente no episódio, com a notável exceção da
estátua de Miche-langelo. O florentino preferiu a
exuberância de um homem forte e jovem.

Avanço na narrativa. O povo de Israel está feliz no
capítulo 18 narrado por Samuel. O gigante atacava a
honra de todos e ainda insultava o Deus dos hebreus. A
vitória inesperada do jovem tinha provocado euforia. A
fama de Davi crescia ao atacar filis-teus. As mulheres
cantavam que o rei, Saul, tinha matado milhares, mas
Davi, dezenas de milhares. Não bastasse a fama
crescente do jovem de Belém, a amizade com Jôna-tas,
filho mais velho do rei, era muito forte.

O jovem Davi matava mais inimigos do que o velho e
experimentado rei? Entrava na casa real com uma
amizade forte com o herdeiro natural do trono? Era mais
amado pelas mulheres de Israel e pelo primogênito do
que o próprio Saul? Era demais para o primeiro rei de
Israel.

A reação do soberano foi significativa. Duas vezes
arremessou uma lança para matar o jovem filho de
Jessé. Errou em ambas. O rei estava em uma rede
complexa de sentimentos. Na narrativa, logo após ter
tentado cravar Davi na parede, dá a ele sua filha Merab
em casamento. O ex-pastor se achava indigno de ser
genro de rei. A jovem acabou casando com outro.

Para piorar a ambiguidade, outra filha do rei se
apaixonou pelo guerreiro célebre. Davi, de novo, acha
honra elevada, porém acaba aceitando o encargo em
troca de um gesto de gosto duvidoso para nosso padrão
atual: o dote seria o corte de um número expressivo de
partes íntimas de filisteus. Era uma armadilha do rei ao
futuro genro, que respondeu dobrando a meta e
oferecendo duzentos prepúcios ao soberano que
demandara cem.
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