Celso Ming - O medo
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Jornal O Estado de S. Paulo/Nacional - Economia
Sunday, May 29, 2022
Cenário Político-Econômico - Colunistas
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Por toda a parte, arranjos totalitários vêm colocando em
risco a democracia. Isso acontece porque o medo toma
o espaço da confiança.
O filósofo inglês Thomas Hobbes (1588-1679) baseou
sua teoria política na emoção primária que muito bem
conhecia: 'Minha mãe pariu gêmeos, eu e o medo',
disse. Pois Hobbes ensinou que o medo e a
insegurança primordial levam as pessoas e a sociedade
a escolherem um chefe ao qual delegam o poder de
exercer o comando do grupo, da tribo, do país. A
consequência é a criação do Estado, a que ele deu o
nome de um monstro marinho, o Leviatã. Muito antes de
Hobbes, o poeta romano Petrônio (séc. I d.C.),
escreveu: 'O medo primitivo produziu os deuses na terra
(primus in orbe, deos fecit timor)'. O medo modela as
instituições, inclusive a religião.
Desde cedo, o ser humano é manipulado em seus
medos. Histórias infantis e canções de ninar falam de
lobo mau, bruxas, boi da cara preta, cuca, homem do
saco e do papa-figo.
Mas, durante milênios, o medo foi reprimido na cultura
ocidental. Quem manifestasse medo se expunha a ser
visto como covarde e molengão. Bom era 'o cavaleiro
sem medo e sem mancha (le chevalier sans peur e sans
reproche)'. Virtude equivalia a coragem.
Os espartanos eram valentes na luta, não temiam
inimigos externos. Esparta era uma das raras cidades
sem muralhas. Um dos seus reis, Argesilau (séc. IV
a.C.), apontava para seus guerreiros e dizia: 'Eis as
muralhas de Esparta'. E a quem perguntasse onde
ficavam os limites da cidade, respondia brandindo a
espada: 'Até onde isto chegue'. Mas os espartanos
tinham um medo que chegava ao paroxismo: viviam sob
permanente temor de revolta dos hilotas, seus escravos.
Para dar conta desse medo, militarizaram à exaustão
cidadãos e instituições e viviam sob um regime de
grande austeridade, espartanamente.
Em toda a parte, o medo podia transformar-se em
pânico: quando grassava a peste, quando os bárbaros
chegavam às portas da cidade ou quando os
combatentes se julgavam perdidos. Era o deus Pã, que
os tomava, daí o pânico. Situações de pânico se
estenderam ao medo da heresia (à inquisição) às
guerras religiosas, ao tombo repentino dos mercados.
Foi Freud e os psicanalistas que vieram depois dele que
resgataram o medo das profundezas obscuras da alma.
O historiador francês, Jean Delumeau, em sua obra
História do Medo no Ocidente (Cia. das Letras),
produziu notável inventário dos medos que sacudiram a
civilização ocidental: medo do mar, da escuridão, da
peste, da morte, do inferno. Medo do fim do mundo, do
diabo. Medo da mulher e vice-versa, medo do estupro,
das bruxas, dos diferentes, do vizinho, dos de outra
religião, como muçulmanos e judeus...
Depois de milênios de História e de evolução cultural, o
ser humano ainda lida mal com o medo. E torna tudo
ainda mais difícil quando a sociedade segue negando
sua existência e seu jogo. Medo de tudo e medo de
nada. Pior ainda, quando a vítima é a democracia.