Sérgio Augusto - Lendo Tolsto! sob à supervisão de um bárbaro
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Jornal O Estado de S. Paulo/Nacional - Cultura
Sunday, May 29, 2022
Cenário Político-Econômico - Colunistas
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Autor: Sérgio Augusto
Aconteceu em Ipanema, na manhã de 10 de maio de
2022,. Repito: de 2022, não de 1933. E numa praça da
zona sul do Rio de Janeiro, não na Bebelplatz ou
logradouro similar de Berlim sob dominação nazista Não
presenciei o fait divers, mas conheço bem quem o
viven-ciou e dele me deu conta: minha fisioterapeuta.
Estava ela numa das mesas da varanda do Armazém
do Café da Praça Nossa Senhora da Paz, a tomar seu
expresso enquanto liao romance Anm Karenim, quando
um quarentão alto e de boa aparência aproximou-se
dela e, espichando o braço, alcançou o livro, que só
largou depois de lhe ver a capa, com o título e o nome
do autor. 'Por que você tá lendo esse livro comunista?',
cobrou o desconhecido.
Entre assustada com a súbita intrusão do estranho e
pasma com sua desfaçatez e crassa ignorância, minha
amiga retrucou: 'Tolstoi comunista?! Mas ele morreu
antes da Revolução Soviética'.
Verdade que Tolstoi podería ter tomado conhecimento
do Manifesto Comunista antes mesmo de iniciar sua
produção literária, mas àquela altura ele já estava
comprometido ideologicamente com o anarquismo
cristão, além de encasquetado com a ideia de um
romance envolvendo adultério, suicídio e uma romântica
dama da aristocracia czarista.
Muita gente boa (Faulkner, Na-bokov) considera Anm
Karenina o melhor romance de Tolstoi e qua-se nenhum
deles desperdiçou tinta comparando-o a Madame
Bovary,
quando nada porque o tema predominante em Anm
Karenim são as contrastantes concepções de felicidade,
por ele condensadas na abertura do livro. Bem, é
possível que o bully que buliu com minha amiga tenha
confundido Tolstoi com Trotski; hipótese plausível, a
julgar pelo seu esbregue, que em seguida cresceu em
decibéis, até culminar com uma suposição ('Já sei: você
é eleitora do Lula!') e uma ameaça: 'Isso vai acabar!'.
Isso o quê? Eleições? Poder ler escritores russos?
Poder ler Tolstoi? Poder ler Anm Karenim tomando café
em público?
Resumo da ópera: minha amiga foi assediada por um
lídimo neonazista brasuca, tão ignorante e ultrajante
quanto aqueles folclóricos meganhas da ditadura militar
que apreenderam uma edição de O Vermelho e 0
Negro, de Stend-hal, pensando tratar-se de uma obra
de doutrinação comunista, embora fosse mais lógico
tomá-la por uma história do Flamengo.
Conhecemos bem essa gente. Seus ancestrais, se não
surgiram, vice ja amffondosamente no Terceiro Reich,
onde, mal instalado o regime nazista, 25 mil exemplares
de livros de Marx, Freud, Kafka, Thomas Mann e outros
'subversivos' foram incinerados em praça pública sob o
patrocínio do ministro mais poderoso de Hitler. Todo 10
de maio, aquele sinistro auto de fé é lembrado com
repúdio na Alemanha. Aqui não lhe faltam homenagens,
ainda que involuntárias e sem tochas na mão.?