Superinteressante - Edição 399 (2019-02)

(Antfer) #1
ian Russell n ão
era um anestesista
qualquer. Além de
tabalhar em partos
e cirurgias no hospi-
tal público de Hull,
uma cidade portária
quato horas ao norte de Londres, tam-
bém escrevia artgos científicos sobre
o tema. Já tnha publicado mais de 20,
todos bem técnicos (como “Analgesia
subaracnoide em cesarianas”). Até que,
em 1993, resolveu tentar algo menos
ortodoxo. Monitorar 32 mulheres, na
mesa de cirurgia, para tentar respon-
der à seguinte pergunta: quando uma
pessoa toma anestesia geral, ela perde
a consciência? É óbvio que sim, você
dirá. Afinal, a anestesia – que tem ação
sedatva, analgésica e relaxante mus-
cular – faz qualquer pessoa apagar em
segundos. Mas Russell, do alto de sua
experiência, suspeitava que não fosse
bem assim. E criou uma experiência
insólita para tentar descobrir.
Antes de cada cirurgia, ele colocou um
manguito (medidor) de pressão arterial,
bem apertado, no antebraço direito da
paciente. O instumento servia como um
torniquete, impedindo o fluxo de sangue


  • e evitando que o relaxante muscular
    chegasse à mão da mulher. O objetvo
    era preservar os movimentos da mão
    (você já vai entender o porquê disso). Em
    seguida, a mulher recebia a anestesia ge-
    ral, apagava, e os médicos começavam a
    cirurgia. Russell punha fones de ouvido
    na paciente, e tocava uma mensagem que
    ele havia gravado numa fita cassete. “Se
    você consegue me ouvir, abra e feche os
    dedos da sua mão direita.”
    O plano era o seguinte. Se a mulher
    mexesse a mão, Russell traria o fone e
    lhe diria ao ouvido: “se você puder me
    ouvir, aperte meu dedo”. Se a paciente
    fizesse isso, ele lhe pediria que aper-
    tasse seu dedo de novo caso estvesse
    sentndo dor. E aí, se a paciente fizesse
    esse último gesto, ele lhe daria mais


sedatvo para que ela voltasse a dormir.
O resultado foi impressionante. 70%
das mulheres apertaram o dedo de Ian,
ou seja, estavam conscientes mesmo
sob anestesia geral. E 62% indicaram
que estavam sentndo dor. Depois de
acordar, nenhuma delas se lembrou de
nada. Mas Russell ficou tão abalado que
interrompeu o estdo no meio (a meta
era testar 60 pacientes).
“A definição de anestesia geral inclui
inconsciência e ausência de dor durante
a operação – fatores não assegurados
por esta técnica”, escreveu. Para ele,
o procedimento nem sequer deveria
ter esse nome; seria melhor chamá-
-lo de “amnésia geral”. Russell conta a
história no livro Anesthesia: The Gift of
Oblivion and the Mystery of Consciousness
(“Anestesia: o dom do esquecimento e
o mistério da consciência”, sem versão
em portguês), da austaliana Kate Co-
le-Adams. E esse caso não é o único.
Nas últmas décadas, outos cientstas
observaram fenômenos similares – e
ainda mais intigantes.
Num estdo de 1985, o psicólogo
Henry Bennett, da Universidade da
California, colocou fones de ouvido
em pessoas sob anestesia geral, du-
rante operações de vesícula e coluna.
Elas foram divididas em dois gru-
pos. Metade ouviu, pelos fones, sons
típicos de sala de cirurgia. A outa,
uma mensagem gravada por Bennett:
“Quando eu vier conversar com vo-
cê daqui a alguns dias, você vai pu-
xar sua orelha”. Alguns dias depois,
Bennett foi conversar com os pacien-
tes. Eles não se lembravam de nada


  • mas quem tnha ouvido a mensa-
    gem deu seis puxadinhas na orelha,
    em média (as outas pessoas, no má-
    ximo, uma vez).
    Em 1993, cientstas da Universidade
    Ludwig-Maximilians, na Alemanha, co-
    locaram fones de ouvido em 30 pacientes
    de cirurgia cardíaca. Quando as pesso-
    as estavam inconscientes, sob anestesia


geral, os fones tocavam um resumo do
clássico Robinson Crusoé, bem como a
seguinte instução: “Quando você for
perguntado sobre a palavra ‘sexta-feira’,
vai mencionar Robinson Crusoé”. Três dias
depois, nenhum deles se lembrava de
nada. Mas, ao ouvirem a palavra “sexta-
feira” – que é o nome de um personagem
da história –, sete pacientes a relaciona-
ram com Robinson Crusoé.
Há estdos mostando que, mesmo
sob doses normais de anestesia, mui-
tos pacientes ouvem e entendem o que
os médicos estão dizendo na mesa de
cirurgia. E, ainda que não se lembrem
de nada depois, alguns taços emocio-
nais desses episódios permanecem. É
a chamada “memória implícita” – um
tipo de memória que não podemos
acessar de forma consciente, mas que
de alguma maneira está em nossa mente
e pode provocar mudanças em nosso
comportamento. Ao contário da me-
mória explícita (que você se lembra de
ter), a memória implícita só pode ser
detectada em testes psicológicos.
Será, então, que os pacientes desses
estdos estavam parcialmente conscien-
tes durante a cirurgia? Pode ser. Ou
talvez algo mais assustador. “Eu diria
que muitos dos pacientes no estdo do
Robinson Crusoé estavam plenamente
conscientes durante a anestesia geral,
mas tveram amnésia posterior”, diz
Michael Wang, professor emérito de
psicologia clínica da Universidade de
Leicester, na Inglaterra, que há décadas
tabalha com pacientes que acordaram
durante operações. “É como acontece
quando usam drogas do tpo ‘boa noite,
Cinderela’, ou quando alguém fica muito
bêbado. No dia seguinte, essas pesso-
as não têm memória do que ocorreu,
mas isso não significa que estvessem
inconscientes”, afirma Wang.
Trata-se de uma tese polêmica, longe
de ser comprovada. Mas os pesquisado-
res concordam num ponto: ainda não
sabemos exatamente como os anesté-
sicos gerais funcionam. Afinal, o que
essas drogas fazem conosco quando nos
mandam para o “andar de baixo”? De
que forma “desligam” nossa mente? Os
cientstas não têm todas as respostas,
mas algumas estão surgindo. Novos es-
tdos revelam o que acontece no nosso
cérebro quando estamos sob a ação desse
coquetel poderoso. Você não dorme; é
bem mais complexo que isso.

você dorme, mas seu cérebro continua


parcialmente ativo – e, mesmo sob


anestesia geral, pode ouvir sons


e até memorizar instruções.


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