Superinteressante - Edição 399 (2019-02)

(Antfer) #1
Do alívio ao nocaute
Ao longo da história, os médicos ten-
taram de tudo para evitar a dor dos
pacientes. Apertaram nervos, pressio-
naram artérias, usaram ópio, álcool, hip-
nose, acupuntra, extatos de plantas...
Cirurgias só eram feitas em últmo caso,
pois tnham risco de morte elevado e
causavam sofrimento brutal. Imagine
amputar um braço sem anestesia; era
preferível morrer. Isso só começou a
mudar em 1772, quando o químico in-
glês Joseph Priestley descobriu o óxi-
do nitoso. O gás relaxava o paciente
e produzia uma incontolável vontade
de rir – daí o nome “gás hilariante”. No
século 19, o físico inglês Michael Fa-
raday viu que o éter tnha um efeito
similar, e os dentstas passaram a usar
esse gás para extair dentes. Em 1841,
o médico americano Crawford Long
realizou a primeira cirurgia usando éter
como anestésico geral. Long retrou
dois tmores da nuca de um paciente


  • que apagou e não sentu nada.
    Mas quem levou a fama como o “pai”
    da anestesia geral foi o dentsta america-
    no William Morton. Em 1846, ele aplicou
    éter ao jovem Gilbert Abbott com um
    inalador de vidro, fazendo-o dormir
    calmamente enquanto o cirurgião John
    Collins Warren retrava um tmor de
    seu maxilar. A demonstação foi feita
    no Hospital Geral de Massachusetts, em
    Boston, e virou manchete. No mesmo
    ano, o médico americano Oliver Holmes
    se apropriou do termo grego anaesthesia
    para descrever aquele efeito mágico do
    éter de “tornar insensível” o paciente.
    A anestesia geral é um procedimento
    altamente seguro, e que evoluiu muito
    de algumas décadas para cá. “Nos últ-
    mos 20 anos, a taxa de mortalidade de
    causa anestésica caiu dez vezes, sendo
    agora de 1 para cada 100.000 casos”,
    diz Sérgio Logar, presidente da Socie-
    dade Brasileira de Anestesiologia. Isso
    é resultado da melhora na qualidade


das drogas, do monitoramento e da
formação dos profissionais (além da
faculdade de medicina, o anestesiolo-
gista faz mais tês anos de especializa-
ção), além de medidas que minimizam
a chance de falhas no equipamento e
erros humanos. “Nas últmas décadas, a
evolução na segurança da anestesia foi
comparável ao progresso na segurança
da aviação”, diz Logar.
Anestesia funciona, e bem. Mas só
recentemente a ciência começou a des-
cobrir como funciona. “A anestesia geral
é muito diferente do sono. Ela tem mais
semelhanças com o estado de coma”, diz
a neurocientsta Laura Lewis, do MIT. De
fato, a anestesia geral busca vários ob-
jetvos simultâneos: que a pessoa fique
inconsciente, que não se mexa, não sinta
dor e nem tenha respostas fisiológicas à
dor, como hipertensão e taquicardia. E,
finalmente, que não se lembre de nada.
Os anestésicos fazem isso. Mas como?
As primeiras pistas vieram nos anos
1980, quando os cientstas Nick Franks
e William Lieb, da Imperial College de
Londres, descobriram que as moléculas
desses remédios se ligam aos receptores
de GABA (ácido gama-aminobutírico)
no cérebro. Essa substância é produzi-
da natralmente pelo organismo, e sua
função é frear a comunicação ente os
neurônios (que, em excesso, pode cau-
sar convulsões e ataques epiléticos).
O álcool também se liga aos receptores
de GABA, e por isso causa torpor – um
estado mais profundo do que o sono.
Se você estver dormindo, certamente
acordará se alguém cortar sua pele com
um bistri. Já uma pessoa muito bêbada
pode até ser operada sem anestesia, e
mesmo assim não despertar. O álcool
e os anestésicos funcionam como uma
espécie de GABA artficial, mais potente,
e por isso nos fazem apagar. Mas isso
não explica tdo. Há algo a mais.
O enigma só começou a ser des-
vendado em janeiro de 2017, quando
pesquisadores da Universidade de

Queensland, na Austália, publicaram
um estdo sobre o propofol, um dos
anestésicos mais usados atalmente (e
que, numa dose letal, matou o cantor
Michael Jackson). Os cientstas desco-
briram que esse remédio restinge a
mobilidade de uma proteína chamada
sintaxina 1A. “A proteína parece ficar
presa num ‘engarrafamento’ dento das
sinapses [extemidades dos neurônios]”,
diz o neurologista Bruno van Swinde-
ren, líder do estdo. Com isso, haveria
ainda menos descarga de neurotans-
missores e, portanto, menos comuni-
cação ente os neurônios.
Todos os neurônios dependem da sin-
taxina 1A para se comunicar. Por isso, os
cientstas suspeitam que esse conges-
tonamento aconteça no cérebro inteiro,
afetando até 100 tilhões de sinapses
(são cerca de mil delas por neurônio).
Mas não para aí. Estdos recentes
provaram que os anestésicos também
dificultam a ação da cinesina, uma pro-
teína essencial para o funcionamento
dos neurônios, e inibem a produção de
uma enzima chamada Complexo I – que
é vital para a produção de energia nas
mitocôndrias, dento das células. Todas
essas descobertas têm ampliado o foco
dos cientstas.
“A anestesia geral não produz in-
consciência só tornando os neurônios
menos atvos. Ela pode quebrar as cone-
xões ente várias regiões cerebrais”, diz
Laura Lewis, do MIT. Isso pode ajudar a
explicar aqueles casos impressionantes,
sobre os quais falamos no começo desta
reportagem, em que a pessoa mantém
algum nível de consciência enquanto
está anestesiada. Uma possibilidade é
que o neocórtex, região cerebral ligada
à consciência, contnue funcionando em
algum grau – e o hipocampo (área que
coordena a formação de memórias) não
consiga monitorar sua atvidade. Mas
isso ainda é mera especulação.
A anestesia geral só será plena-
mente desvendada quando a ciência
resolver o maior mistério de todos: o
que é a consciência. Somente enten-
dendo isso poderemos saber como
tilhões de sinapses podem se desligar
na mesa de cirurgia e depois voltar a
funcionar perfeitamente, sem sequelas.
E por que, em muitos de nós, algo con-
tnua ligado – mesmo que não nos lem-
bremos de nada depois. S

opropofol (anestésico que matou


ocantor michael jackson) provoca


um engarrafamento elétrico que pode


afetar todos os 100 trilhões de sinapses.


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