2 | ípsilon | Sexta-feira 1 Novembro 2019
N
o parágrafo 329 de A Gaia Ciência, escreveu
Nietzsche que “ o estilo e o espírito das cartas
são sempre o verdadeiro sinal do tempo”. Ao
lermos hoje esta afirmação, uma pergunta se
impõe imediatamente: qual é o sinal do
tempo em que já não se escrevem cartas?
Devemo-nos inquietar ou, pelo contrário, sentir
regozijo por o sinal do tempo – é tão fora de moda
falar desta maneira! – ter passado para outros media
mais modernos que estão de tal modo em constante
metamorfose que nem sequer dão tempo a que se
sedimente um espírito e um estilo como os que
Nietzsche identificou na correspondência epistolar.
As cartas são hoje o objecto supremo, o fetiche
mais desejado, do sentimento de nostalgia. Os
nostálgicos da escrita epistolar acreditam mesmo
que ela traria grandes benefícios ao espírito. E
melhoraria a qualidade da caligrafia. Porquê
introduzir aqui a questão da ortografia? Porque uma
carta só mantém o genuíno estilo epistolar se for
escrita à mão. Cartas e teclados não rimam, a não ser
que estejamos a falar de envelopes com uns papéis lá
dentro, como os que que recebemos todos os dias
(introduzo aqui um longo parêntesis para observar
que às vezes temos surpresas desagradáveis por
termos abandonado a caneta e o papel em favor do
teclado e do ecrã: pomo-nos a escrever à mão e já
nem reconhecemos a nossa caligrafia, não por ela ter
envelhecido connosco, mas, pelo contrário, porque
nos transporta para um estádio infantil e perdeu
tudo aquilo que levámos anos a aprimorar; até a
nossa assinatura soa a “falsa”, quando inspeccionada
pelas máquinas que confirmam a nossa identidade;
os sistemas de reconhecimento biométrico
resolveram este problema: a nossa “assinatura” foi
escrita biologicamente de uma vez por todas e nada a
pode alterar).
As cartas transformaram-se em e-mails. No
início, os e-mails ainda mantinham a complexidade
retórica das cartas. E até as fórmulas e códigos da
correspondência epistolar não desapareceram
imediatamente: começávamos e terminávamos
como se não fôssemos obter uma resposta imediata e
não estivéssemos muito mais a iniciar um diálogo do
que a estabelecer uma troca muito diferida no
tempo. E no final colocávamos o nome, como quem
grafa a assinatura. Mas depois começou-se a
perceber que os e-mails ofereciam uma forma nova e
elegante de associar a escrita íntima e espontânea à
rapidez telegráfica. No entanto, rapidamente todos
os códigos e convenções da correspondência
epistolar foram desparecendo dos e-mails ou foram
substituídos por versões aligeiradas: uma inicial com
letra minúscula, em vez do nome, para retirar
solenidade e formalismo; fórmulas simples e muito
abreviadas para os cumprimentos finais, etc. E,
como sabemos, erros fatais, antes impossíveis ou,
pelo menos, muito improváveis, começaram a
acontecer: por exemplo, enviar um e-mail
apaixonado a um amigo ou uma amiga que consta no
arquivo do nosso correio electrónico com o mesmo
nome que essa pessoa amada.
A etapa seguinte, aquela em que estamos hoje,
consistiu em os e-mails se terem tornado uma forma
de escrita que se assemelha aos sms (recordemos que
o primeiro sms foi enviado em 1992). No mundo
perdido das cartas, anterior às redes e às novas
tecnologias, vivíamos divididos entre a solidão e a
comunhão. Ambas tinham potencialmente grandes
virtudes criativas e alguma densidade. Essa é aliás a
razão pela qual se desenvolveu na nossa cultura o
género epistolar, responsável por grandes obras
literárias. O e-mail tipo sms instaurou uma tagarelice
com fracas potencialidades literárias. Dissipa o medo
de estarmos sós e põe-nos em constante interacção,
ao mesmo tempo que nos protege do risco de uma
relação real. Mas nada nos obriga com maior
veemência a perceber a diferença entre um e-mail e
uma carta do que o confronto com um e outro,
enviados por um amigo ou conhecido que já morreu:
a carta, sentimo-la como parte de um espólio e como
um objecto com aura, reconfigurado pelo trabalho
do luto; mas o e-mail é como um zombie, um
morto-vivo que surge para nos meter medo, para nos
deixar na angustiante indecisão se devemos apagá-lo
para deixar o morto em paz (e nós em paz com ele)
ou guardar a relíquia no túmulo mais profano e
profanado que alguma vez houve.
J
á lhe chamaram geração curtas
(Augusto M. Seabra e Daniel Ribas).
Pode ser um novíssimo cinema
português ( João Maria Mendes).
Certamente é sempre um sinal do
tempo, biográfico (dos seus autores)
e social (do contexto colectivo que os
envolve). Paira em seu torno uma estética da
invisibilidade, designação que um dia usei
sobre o cinema de António Reis, figura
tutelar de um cinema de autor, português,
que se preserva da confusão dos vendilhões
no templo, procurando uma mística
profética que lhe devolva uma aura que a
arte outrora teve.
Cláudia Varejão pertence e não pertence a
essa geração. Realmente iniciou-se com uma
trilogia de curtas de ficção a que se seguiram
dois documentários de longa-metragem
(Ama-Sam e No Escuro do Cinema Descalço os
Sapatos, de 2016). O caminho parece repetir
o de um grupo que integra João Pedro
Rodrigues, Miguel Gomes, Marco Martins,
Gonçalo Tocha, Gabriel Abrantes, João
Nicolau e João Salaviza.
No entanto Cláudia Varejão fez um
percurso de formação diferente dos
cineastas anteriores. Mais nova que quase
todos eles, não frequentou a Escola Superior
de Cinema, antes estudou na Restart em
Lisboa, na Academia Internacional de
Cinema de São Paulo e no Programa
Gulbenkian Criatividade e Criação Artística
em colaboração com a Deutsche Film und
Fernsehakademie de Berlim, e viu com
certeza muito cinema entregue a si própria.
Aparentemente teve suficiente contacto com
a formatação académica, mas terá
prevalecido a experiência e intuição pessoal
e o seu espírito de iniciativa.
Conheci Cláudia Varejão, sem ter ainda
visto algum dos seus filmes, no dia 12 de
Outubro no Encontro de Outono de
Psicodrama na Universidade Fernando
Pessoa onde participou numa mesa com Rui
Mota Cardoso, Pedro Mexia e Salvato Trigo
sobre O Original e a Cópia – Humanos Digitais.
Impressionou-me o tom repousado, mas ao
mesmo tempo perspicaz, com que foi
desenrolando observações surpreendentes,
como que “uma cópia podia ser também o
original” ou revelando que muito nova,
ainda sem saber que viria a ser cineasta,
percebeu que com uma câmara de vídeo
captava imagens da avó como que a
conferir-lhe uma espécie de imortalidade.
Como fazem hoje os humanos digitais
pesquisei na net e descobri que na semana
seguinte ela, que até é natural do Porto, era
artista convidada do Family Film Project –
Festival Internacional de Cinema, Arquivo,
Memória, Etnografia, com oportunidade de
Crónica
Cineasta, pesc
António Roma Torres
Este artigo parte de um recente e polémico
rebaptismo: o “Pavilhão Rosa Mota”, no Porto,
passou a chamar-se “Super Bock Arena. Pavilhão
Rosa Mota”. Mas vai muito além deste facto e analisa
com muita pertinência o assalto consentido que as
marcas comerciais fazem a espaços urbanos e
instituições. Infelizmente, não é só por cá que tal
acontece. Testemunho muito eloquente deste
processo generalizado é um livro-denúncia que o
historiador de arte italiano Salvatore Settis escreveu
em 2002, durante a vigência de um dos governos
de Berlusconi. Chama-se esse livro Italia S.p.A. e
começa por citar um artigo do jornal alemão
Frankfurter Algemeine Zeitung que chamava ao
governo italiano, por causa de uma lei sobre o
património, “os talibãs de Roma”. Seria um pouco
demagógico falar dos “talibãs do Porto” (em nada
diferentes dos “talibãs de Lisboa”), mas talvez não
fosse desajustado usar o subtítulo um pouco mais
benevolente desse artigo: “Saldos de fim de
estação”. Ou, como dizem os anúncios nas montras
das lojas: “Liquidação total”.
Acção Paralela
Cartas, e-mails, sms
António Guerreiro
Livro de recitações
“Porto, sociedade anónima (S.A.)”
Título de um artigo de opinião de Pedro Levi Bismarck, PÚBLICO, 29/10/2019
4
Mia Couto
Entrevista
num fim de
tarde em Maputo
36
Abdullah
Ibrahim
Este jovem de 85
anos tem dois
32 álbuns em 2019
Carlos do Carmo
A despedida
dos palcos
26
Aldina Duarte
a mostrar-nos
o fado como
razão de viver
22
Vitalina Varela
Pelas suas
próprias palavras
FICHA TÉCNICA: DIRECTOR MANUEL CARVALHO EDITOR VASCO CÂMARA DESIGN MARK PORTER, SIMON ESTERSON DIRECTORA DE ARTE SÓNIA MATOS DESIGNER ANA CARVALHO E SOFIA ESPADINHA MARTINS FOTO DA C