12 | ípsilon | Sexta-feira 1 Novembro 2019
Vanda, Ventura, Vitalina
Pedro Costa ocupa-se das feridas de guerra:
do que nestas mulheres e neste homem
sobrevive do trauma das alterações sociais e
culturais que Portugal atravessou.
Por Daniel Ribas
A
obra de Pedro Costa
sempre se moldou como
um jogo de bonecas
russas: de um filme para o
outro, as histórias e as
personagens
misturam-se. É como se, no final de
cada um destes filmes, houvesse
uma força para fazer um próximo:
para chegar, cada vez mais, perto
de alguma coisa. Faltar-nos-ão
sempre palavras para perceber
qual foi, é ou será esse limite final.
Em certo sentido, este contínuo
entre filmes demonstra como estas
são histórias de fantasmas e
espectros que inundam um
imaginário denso, algures entre a
história de um país e o mais
profundo estranhamento do ser-se
“humano”. Estes fantasmas,
simulacros de um real (as
Fontainhas, ou outro qualquer
lugar), são caracterizados por três
pessoas, personagens-chave deste
cinema: Vanda, Ventura, Vitalina.
Relembremos a narrativa
fundadora deste percurso: depois
de regressar de Cabo Verde, onde
acabara Casa de Lava, Costa traz
com ele cartas para os habitantes
das Fontainhas. Depois de aí filmar
uma ficção (Ossos), é provocado por
Vanda: porque não ficar aqui, neste
quarto? (“Vem fazer um filme no
meu quarto, sou uma rapariga, tu és
um rapaz, é evidente que gostas de
nós, de mim e da minha irmã.
Estamos lá as duas, tu vens passar
uns tempos connosco e podes fazer
o que tu gostas tanto, um filme”.)
Nasceu, com No Quarto da Vanda,
esse modelo de filmar pessoas e os
seus lugares de afecto, de filmar as
suas memórias, de filmar uma
espécie de humanidade intensa
destas personagens. Não havia outra
forma que não fosse perseguir a
potência de vida destes três
fantasmas. De perceber que neles se
conjugam os rostos daqueles que
são sub-representados.
No movimento destes corpos,
evidencia-se uma vida precária e
uma profunda contradição entre a
sua solidão — a de Vanda, Ventura
e Vitalina — e as suas relações com
outros (vizinhos, amigos,
desconhecidos). Costa ocupa-se
das feridas de guerra: do que
nestas mulheres e neste homem
sobrevive do trauma das alterações
sociais e culturais que Portugal
atravessou nas últimas décadas.
Estão marcadas nas suas mãos, nas
suas almas, a incompreensão que o
“progresso” exige às suas vítimas.
Eles são a superfície de um
desespero, que é tanto pessoal
(humano, no seu sentido mais lato
do termo), como de uma
comunidade em desaparição. A
marca mais evidente desta falha é a
face destas personagens — filmada
de forma obsessiva por Costa — ,
verdadeiro atributo de uma
alteridade a que nunca
conseguimos chegar totalmente,
mas da qual surgem os sinais da
indelével passagem do tempo.
Alguma (muita) coisa mudou,
nestes mais de vinte anos, entre No
Quarto da Vanda, Juventude em
Marcha, Cavalo Dinheiro ou Vitalina
Va rel a. As ruínas ou os barulhos
persistentes que víamos e ouvíamos
como pano de fundo de No Quarto
da Vanda já não são mais do que
memórias distantes. As
comunidades transformaram-se.
Vanda já não é Vanda ( já não o era
em Juventude em Marcha). Algo de
mais grave foi possuído por este
cinema. Se recordarmos a figura de
Vanda — e até do seu generoso
convite ao realizador — vemos uma
personagem que criava a vida,
mesmo que continuamente se
destruindo. Vanda era excêntrica,
desmesurada, raptava a câmara
para si. Fazia voz grossa. Impunha
uma presença estridente. Foi
também assim em Juventude em
Marcha, a nova Vanda disputava o
plano com Ventura.
Por isso algo se transformou em
Cavalo Dinheiro: já não é de um
presente contínuo que se fala (o
bairro, a droga, as novas casas), mas
sim de uma mistura incoerente
entre tempos. Para Ventura, Cavalo
Dinheiro foi uma obra de catarse e
no seu olhar de medo — visível na
célebre cena do elevador — estava
encoberta uma profunda acusação
colonial. Esse olhar de medo é o
olhar da violência destruidora, que
está entre a profunda dissolução da
ideia de comunidade como a de uma
vontade radical de regeneração. Nos
filmes de Costa, e em especial em
Cavalo Dinheiro e Vitalina Varela,
uma certa violência é necessária. É
talvez aí que Vitalina Varela, filme e
personagem, se posicione como um
lugar de depuramento daquilo que é
meramente acessório para nos
acercarmos do lugar de confronto —
para ver e ouvir uma mulher que
chora; para sentir nela a profunda
solidão do mundo. Vitalina é uma
mulher que, como num policial,
procura os indícios da sua tristeza:
os indícios do momento em que
tudo mudou.
Será sempre incrível a forma
como Costa filma os seus heróis: a
intensidade dos planos, os jogos de
luz e som, a forma como a câmara
inclinada, perto do chão, olha para
eles. Mas, em Vitalina Varela, como
já em Cavalo Dinheiro, inunda-nos a
escuridão. A imagem de Vitalina,
nos céus, a lutar contra o mundo, é
o sinal de que (pouco) nada nos
salva. Essa é também a grande
diferença para Vanda (ou para o
Ventura de Vanda): havia vida, havia
luz no meio do caos e da ruína.
Vitalina Varela parece chegar-se,
de forma circular, a O Sangue.
Apesar das diferenças evidentes, há
em ambos uma espécie de terror
pelo mundo, de dificuldade em
aceitar a sua própria humanidade
(Vitalina e Vicente, personagem
trágica de Pedro Hestnes). Nos dois
filmes, os zombies rondam os
protagonistas para lhes sugar essa
humanidade (sempre Jacques
Tourneur a assombrar o cinema de
Pedro Costa). No fundo, os filmes do
realizador estão no centro de um
furacão: no preciso momento em
que a humanidade se perde nela
própria, em que memória e real se
confundem, em que o mais sincero
filme do quotidiano se transforma
num épico. É um cinema no qual
estas Vanda, Ventura, Vitalina
circulam, vertiginosamente, entre a
luz e a escuridão. Ventura, e depois
dele, Vitalina, declamam em
Vitalina Varela: “Quando, / Porém,
sobre o mais alto desse monte /
Foram enfim chegados, de repente /
Viu-se-lhe uma das faces alumiar-se
/ De uma luz doce e branda, mas
imensa! (...) Tudo de esclarecia —
vale e serra / E a metade do céu —
aparecendo / Como em puro luar,
ou qual se fosse / Vir nascendo uma
aurora desse lado. / E essa face
radiante era a que Judas / Não
chegara a tocar. / Porém a outra, /
Que ele beijara, conservou-se
escura / Como se o crime dele ali
guardasse... / Nem dava luz; e o
espaço, dessa banda / Onde a
virava, era uma noite imensa, /
Coberto o horizonte de nevoeiro... /
Partindo o mundo em dois, essa
metade / Era a que se ficara envolta
em sombras.” (Antero de Quental,
Odes Modernas). Talvez seja isso: o
mundo de Vitalina e de Ventura é já
só um mundo de desesperança. Um
mundo de sombras que já nem a
violência é capaz de destruir.
Os filmes de Costa estão no centro de um
furacão: no preciso momento em que a
humanidade se perde nela própria, em que
memória e real se confundem, em que o mais
sincero filme do quotidiano se transforma num
épico. É um cinema no qual três personagens –
Vanda, Ventura, Vitalina – circulam,
vertiginosamente, entre a luz e a escuridão