ípsilon | Sexta-feira 1 Novembro 2019 | 27
sito de afecto, dá-me vida”
C
arlos do Carmo diz adeus
aos grandes palcos, mas não
à música. Encheu o Theatro
Circo de Braga no dia 12 de
Outubro e vai encher agora
os coliseus do Porto (ama-
nhã, dia 2) e de Lisboa (dia 9), porque
os bilhetes esgotaram escassos dias
depois de serem postos à venda, em
Fevereiro. Enfrentou a morte várias
vezes e até se diz preparado para
morrer a qualquer momento, mas
agora está cheio de vida e de planos
para gravar novos fados, que conhe-
ceremos em 2020 conforme o mo-
mento o ditar, em singles ou disco
físico. A menos de dois meses de ele
completar 80 anos, no dia 21 de De-
zembro, esta é uma ocasião para
mais uma conversa: sobre fado, me-
mórias, gerações, vícios e o futuro.
Sempre o conhecemos como
Carlos do Carmo. Mas qual é o
seu nome completo? Carlos
Alberto do Carmo Almeida? Ou
Carlos do Carmo de Ascensão
Almeida? É que circulam os
dois, em textos, livros e na
internet. Qual deles é o
verdadeiro?
O meu padrinho de baptismo regis-
tou-me, sem falar com os meus pais,
Carlos Alberto do Carmo Almeida.
Como a minha mãe se chamava Lucí-
lia do Carmo...
Lucília Nunes Ascensão do
Carmo?
Não, ela chamava-se Lucília Nunes
Ascensão. Do Carmo era nome artís-
tico. Por isso, comigo, não estiveram
com meias medidas: Carlos Alberto
do Carmo Almeida. Até que a minha
filha começou a crescer e convenceu-
me a mudar: ‘É giro que fiques Carlos
do Carmo, trocas o Alberto pelo Car-
mo e manténs o Ascensão da tua mãe
e o Almeida do teu pai.’ E mudei. Esse
hoje é o meu nome real. Às vezes apa-
rece um contrato antigo e pergun-
tam-me: ‘É mesmo o senhor?’ Por
isso, tenho um truque: guardei um
bilhete de identidade antigo para
poder provar e dizer ‘eu era este, mas
continuo o mesmo’.
“Eu não vou para
essas tretas da
biografia autorizada.
E se tiver de dizer
umas certas coisas,
sou capaz de ser
desagradável. Sabia,
por exemplo, que
estive cinco anos
sem cantar na
televisão quando era
só um canal? Teria
de dizer quem era
o director”
Sabe de onde vem o ‘do Carmo’
da sua mãe?
Foi o nome artístico que o meu pai
escolheu para ela. Não sei porquê.
Mas o ‘do Carmo’ acabou por
ficar na família...
Porque todos eles mudaram os
nomes. Não tinham Carmo! E fize-
ram-no porque tinham uma paixão
louca, assolapada, pela avó Lucília.
Porque ela deixou de cantar aos 60
anos (e deixou mesmo), mas cantava
a capella naquela varanda, onde os
miúdos tinham os brinquedos. Can-
tava para eles. E isso ficou-lhes na
memória com uma força... Só houve
um que não quis ser Carmo, mantém
o nome Almeida, e com uma contra-
dição: fui eu que escolhi o nome e o
primeiro nome dele é o do meu pai,
Alfredo.
soas levantaram-se em bloco antes de
eu começar a cantar. Deu-me uma
vontade louca de chorar, mas resisti.
E então cantei o primeiro fado com a
voz enfiada no umbigo.
Depois destes, já que não fechou
totalmente a porta a
apresentações pontuais, admite
vir a participar noutros
espectáculos?
Vai haver muito rateio. Cantei brutal-
mente grátis, muito, muito. Essa par-
te está cumprida. Portanto, o que
fizer, terá de ser pago. É um mínimo
de justiça.
Tem ideia de quantos concertos
fez até hoje, no país e fora dele?
Não, não contabilizo isso. Mas posso
dizer que são poucos os países do
mundo onde não cantei. E onde às
vezes só encontrei um português.
Viajando, não são os prédios nem as
ruas que importam, são as pessoas,
contactar A, B e C, essa é a aprendi-
zagem. Lembro-me de ter cantado na
Costa do Marfim, num tempo de uma
certa pacificação naquela zona de
África, e depois no Senegal, que tinha
tido como presidente um poeta, o
[Leopold] Senghor. E foi um ambien-
te maravilhoso, inesquecível.
Nunca pensou passar a escrito
essas memórias, essas
experiências?
A começar pelo meu saudoso amigo
José Cardoso Pires, propostas para
isso não me têm faltado. Qual é o meu
problema? Eu não vou para essas tre-
tas da biografia autorizada. E se tiver
de dizer umas certas coisas, sou capaz
de ser desagradável. Tenho muitas
coisas bonitas para contar e algumas
muito feias. Sabia, por exemplo, que
estive cinco anos sem cantar na tele-
visão quando era só um canal? Teria
de dizer quem era o director.
Mas acha isso impeditivo da
escrita?
Dou um exemplo: a biografia da Piaf
fascina-me. Não está ali nada escon-
dido: a vida, a prostituição, as dificul-
dades, a grande artista, o ídolo de
França, está tudo ali. Isso é que é um
livro de memórias. Agora quando
começam com rodriguinhos, o maior
disto, o maior daquilo... Será que o
sujeito não tem defeitos? Estou a dizer
isto, e espero não tropeçar no meu
próprio pé, mas a escrita biográfica
não é nada que me fascine, que me
entusiasme. Tenho um escritório car-
regado de prémios, diplomas, reco-
nhecimentos nacionais e internacio-
nais. O que é que eu vou fazer? Cada
filho e cada neto tira uma peça e vai
tudo direitinho para o Museu do
Fado. Está feita a biografia.
Mas tem deixado a sua marca
em vários momentos da história
fadista: o filme de Carlos Saura,
a classificação na UNESCO, o
próprio Museu do Fado...
E fiz isso com a maior honra e a maior
alegria de saber que se deixa trabalho
para as novas gerações.
Falando de gerações: consegue
apontar qual é, para si, e em
geral, o maior defeito e a maior
qualidade nas gerações mais
antigas e nas mais recentes?
Comecei a ouvir fado, lembro-me, nas
verbenas. E fascinavam-me aquelas
histórias de fado trágico. Ouvi cantar
muita gente, e muito bem. E tocar
bastante bem. Sendo filho de quem
sou, passei a ouvir o meu pai em casa
a dar lições de dicção à minha mãe
— a dicção dela era irrepreensível. O
que eu notei é que essa era efectiva-
mente uma geração de ouro. Consi-
derando sempre que a Amália é de
outro campeonato, eu adorava a
Maria Teresa de Noronha, a Lucília,
como é óbvio... Gostava de ouvir a
Berta Cardoso, a Argentina Santos, o
Carlos Ramos, o velho Marceneiro.
Mas o velho Marceneiro era diferente
dos outros, porque gostava de ensi-
nar. E eu aprendi muito com ele. Com
ele e com o Frederico de Brito, o Bri-
tinho, que de orelha fazia a música e
escrevia a letra. Ele fez um livrinho,
Roseira Brava. E quem o prefaciou?
Foi o Teixeira de Pascoaes.
Isso falando de quem canta. E os
instrumentistas?
Havia um grupo de guitarristas muito
bom: o Jaime Santos, o José Nunes, o
Martinho da Assunção, o Fontes
Rocha, o Carvalhinho, o Raul
Vamos então aos concertos:
quando pensou nos coliseus, e
já tinha a ideia de que estes
seriam os seus últimos em
grandes palcos, disse também
que continuaria a gravar, só que
noutras condições. Quais?
Tenho décadas de boa relação com a
minha companhia de discos. Quando
comecei, ainda era Philips, adorei
gravar para esse selo, e depois foi-se
transformando, passou a Phono-
gram, Polygram e hoje é Universal.
Estimam-me, eu estimo-os, e se me
ocorresse gravar nem me passava
pela cabeça fazê-lo noutro sítio. Mas
há uma mudança tão radical na ques-
tão técnica que hoje o disco está a
tornar-se uma coisa obsoleta, que as
pessoas não compram. Mas o single
existe, e eu até comecei a cantar com
um single...
Sim, em 1964, com Loucura,
ainda com acompanhamento
eléctrico.
Com bateria, baixo, guitarra eléctrica
e um coro de meninas! Por isso, a
ideia de gravar um single não é nada
que me atormente, pelo contrário.
Mas tem de ser numa situação em que
eu sinta muita vontade de o fazer. Por
exemplo: o Pedro Abrunhosa anda a
telefonar-me há 15 dias, a dizer que
me escreveu um fado. E se os dois
concordarmos, vou dizer à directora
espanhola da minha companhia que
hei-de gravar um fado dele.
Além desse, sabemos que tem
outros fados prontos a gravar,
com letras de Vasco Graça
Moura, Hélia Correia, até
Herberto Helder. Vai cantá-los
nos coliseus?
Já cantei em Braga, portanto são três
despedidas. Os espectáculos do Por-
to e de Lisboa estão montados de
maneira a que sejam iguais. Foi tudo
feito pelo meu produtor, que é o meu
filho, está bem feito, há um ecrã, foi
ele que escolheu o que vou cantar e
eu não me meto nisso. Mas em Braga,
onde não havia ecrã, entrei, sorri a
agradecer os aplausos (encostei os
braços ao peito porque era uma
gigantesca salva de palmas) e as pes- e
FOTOGRAFIAS DE NUNO FERREIRA SANTOS