Folha de São Paulo - 19.10.2019

(Ron) #1

aeee


poder


A14 Sábado,19dEoutubrodE2 019


entrevista
nelmaKodama



  • José Marques


SÃOPAULOPrimeirapresa da
Lava Jato,adoleiraNelmaKo-
dama, 53 ,afirma que nãovê
conexão entreastransações
quefezeaoperação.
Dois meses após ser bene-
ficiada por indultoeretirar a
tornozeleiraeletrônicaque
usa desdequedeixouaprisão,
em 2016 ,ela lança umvolume
de memórias,emquerelata o
período noParanáequestio-
na ostermos da suadelação.
“Tiveopior acordo deco-
laboração”,diz ela em“A Im-
peratriz da Lava Jato”, depo-
imentoaojornalistaBruno
Chiarioni transformado em
li vro. ÀFolhaela diz queteve
“uma pena pior que um homi-
cida”ecompara sua dívida a
uma pena perpétua.
Conhecida porcantar a
música“Amada Amante” na
CPI da Petrobras ao serefe-
rir ao doleiro Alberto Youssef,
comquemconviveu de 2000 a
2009 ,epelos ensaios defotos
comtornozeleira, elarefutao
rótulo de “rainhadodeboche”.
Apesardas dívidasede, se-
gundo ela, sobreviver “daca-
ridadedos amigos”,comemo-
ra terconseguidoguardar as
roupasde quetantogosta.



  • Comoforamosdias apósare-
    tirada datornozeleira?Eu
    queriadormirforadecasa,
    porque tinha um horário pa-
    ra chegar,às 22 h,então quan-
    dodava 20 heujácomeçava a
    teraflição devoltar paracasa.
    Me incomodava muitodormir
    comaquilo[tornozeleira],te-
    nho marcasnomeutornoze-
    lo atéhojeeficomepergun-
    tando sevão sair. Eudormia
    literalmenteplugada, porque
    tinha quecarregarabateria,
    então eu enrolava ofionaper-
    naedormiacomaquilo.
    Quando eu tireiatornoze-
    leiraqueriafazercoisas sim-
    ples,comotomar banho sem a
    tornozeleira, lavaromeutor-
    nozelo etirar aquelacoisa que
    estavameprendendo,aque-
    las amarras em meu pé que
    não permitiam que euvoas-
    se,queeu pudesseser livre.


Quandofalo dormirfora de
casa éver osol nascer,ficaraté
tardenarua. Fiz issosó no se-
gundo dia [risos].

No livro, asra.diz queassu-
miu muitasculpasnaLavaJa-
to quenão eram suas. Quais?
Quando houveabuscaeapre-
ensãoefoi deflagradaaope-
ração[Lava Jato], no dia 17 de
marçode 2014 ,eutinha sido
presa três dias antes.Opesso-
al eraorientado que, se acon-
tecesse algumacoisacomigo,
eraparaeles nãoiremtraba-
lhar,não estarem no escritó-
rioetiraradocumentação.
Eu não tinhanenhumaliga-
çãocomaLavaJato. Eunão
sou Petrobras, eu não sou La-
va Jato.OqueéaLava Jato?

ComeçoucomaPetrobras,
mas seexpandiu paraaOde-
brecht.Eununcafiznegócio
comempreiteira, nãoconhe-
ciaoMarcelo [Odebrecht]...

Maseastransaçõescom Al-
berto Youssef? EraoYoussef
quefazia, não eraeu. Quem
quefazia negóciocom[os ex-
deputados] AndréVargas, Lu-
iz Argôlo,Pedro Corrêa?

Existe uma acusação poreva-
são de divisas...Oque eles me
incriminaram? Por 91 contra-

tosdecâmbiocelebradoscom
acorretoraTOV,queeu,Nel-
maKodama, nuncafechei. Os
91 contratos tinham assina-
turasque nãoforam minhas.
Eu assumicontratos como
se fossem meus,que somados
foramUS$ 5 , 3 milhões, nos
quais eurespondoaumpro-
cesso daReceitaque dá umto-
taldemultadeR$ 78 milhões.
Naépoca foramR$ 12 milhões
ehojetenhoumamultade
R$ 78 ?Gostaria muitodepa-
gar, mas quem pagauma mul-
ta dessas?Éimpagável. Tenho
uma pena perpétua.
Eu tireiatornozeleira,tenho
meu indulto,mas nãotenho
contaembanco. Euvounu-
ma agênciaemeu nome não
passa nocompliance, porque
eu sou pessoa de riscoenão
possoter umaconta. Como é
quevocêrecebe seu salário?
Euprecisoreceber.Comovo-
cê vaimecontratarassim?

Então nãodevia terassumi-
do nenhuma culpa na Lava
Jato? Eu não sou Lava Jato.
Eu deviatersido por um cri-
me: ser doleira.Oque eufa-
zia?Compravaevendia dóla-
resparaclientes que iam via-
jarequeriamcomprar dóla-
resacimadovalorque queri-
am declarar,paraocaraque
tinhacaixa doisequeria sone-
garouoque queriacomprar
mercadorias.Faziaevasão
de divisasesonegaçãofiscal.
Nãodevia tersidocondena-
da porteruma mentecrimi-
nosa,como diziaodoutor Mo-
ro [Naverdade, Moroaumen-
touapena“a título da perso-
nalidade” deNelma]. Pelami-
nha personalidade? Eleépsi-
quiatra?Naépocaengoli, es-
tava presa, ele me julgou.Fui
condenada porteruma “men-
te criminosa”.Poxa, seráque
adele não é?Eo[ex-procu-
rador-geralRodrigo] Janot?
Eu soucondenada a 18 anos
eminha penacaiu para 15 ,eu
cumpro 2 anos e 3 mesesefa-
çoum acordo em que eu não
tivebenefício nenhum.Nãoti-
ve redução de pena,opouco
de patrimônio que eu iacon-
seguircommeu acordo eles
tomarameeutenhoprazo pa-
ra sair da minhacasa. Estou
começando minhavida, aos
53 anos, sem nada.

Mas de quemfoiaresponsabi-
lidade peloacordo nesses mol-
des?Foiminha, porque eu
estavapresa, eu estavapressi-
onada,desesperada. Ficapre-
so dois dias,você entregaaté
tuamãe,eeunão entreguei.

No livroasra.ainda dizque
viumuitos documentosdos
quaisnão tinhaconhecimen-
to.Podeexemplificar?Por
exemplo,esses 91 contratos.
Temcontratoláque eu dis-
se:“Tábom, manda,émeu”.

Também diz que deu infor-
mações informalmentepara
aPFpor 16 meses antes defe-
charadelação. Se sentiu lesa-
da?Claro que sim, porque is-
so deveria pesar no meu acor-
do.Umacordotem que ser
bom paramimeparavocê.
Eu fui presa em março.Emno-
ve mesesninguém quissaber
de mim. Por que quiseramsa-
berde mim[depois]? Porque
precisavamdealgumacoisa.
Houveumacontaque eu
movimentei muitopouco em
2014 .Quando eu estavadando
meus depoimentos parao[de-
legadoda PF]dr. Marcio Ansel-
mo descobriu-se que elacon-
tinuava aser movimentada.
Comeceiaolharcomos
olhos de quemconhece amo-
vimentaçãoedei oscaminhos
das pedras paraele. Ele pas-
sou essa informação paraBra-
síliaefoi deflagradaaOpera-
çãoHashtag. Eucolaborei e
muito, masnão estáemmeu
acordo. Vocêacha que uma
pessoa fica 16 meses semnin-
guém daratenção?Éporque
eu estavasendo bem usada lá.

Equal seriaoseu acordo ide-
al?Me julgarpeloque eu fiz.

Aí não seriaumacordo.Se-
ria um julgamento. Eeupa-
guei pelos meus crimes. Por-
que defato eu fui doleira. Ti-
ve uma penamais pesada que
um homicida, que um trafi-
cante.Dois anosemeio pre-
sa.Sabe quantasvezeseuvia
Lua?Nenhuma.

Asra.disse que se sentiuusada
pela PolíciaFederal.Usada é
umtermochuloeeusou uma
mulher elegante. Desculpa.
Fuiconduzidagentilmente?

Coagida?Temuma partedo
livroquefala doNestor [Cer-
veró,ex-diretor da Petrobras
aela]:“A pesar detodaadifi-
culdadeetensão emocional a
quefomos submetidos.”Não
fui eu que escreviisso. Foiele.
Quandovocê vaipreso,vai
preso.Ficalánasuacela. O
queéque ele [Cerveró]foi
aqui? Coagido?Tem queper-
guntar paraele. Enquanto
aquele homem nãofezdela-
ção, nãoteve sossego.

Acha que alguns policiais des-
confiavamdaveracidade dos
seusdepoimentos?Toda vez
eu tinha quemostrarcomsan-
gueaquilo quefalavaesem-
preelesfalavam: ah, porque
nãotemmuitaconsistência o
quevocê fala. Nãotemconsis-
tênciaaquilo queteinteressa,
aquilo que nãoteinteressavo-
cê fala quenão tem, porquevo-
cê sempretem que dar mais,
nadaésuficiente. Eu ouvia isso.

No último processo,asra.aca-
bouvirandoré porfalsoteste-
munho[acusada por um de-
legadoeumescrivão da PF].
Queria saber suaversão. Eu
não fuicomunicada se minha
defesa jáfoicitada nesse pro-
cesso.Logoque eu saí, fui a
Curitibarespondersobreis-
so,ainda estavamuitocon-

Tentaram, mas não tiraram meu


Chanel,diz doleirapresa naLava Jato


apósreceber indultoeretirartornozeleiraeletrônica, NelmaKodamalança livrodememórias


fusaenão me lembrobem o
quefoi dito. Euestava com
uma depressão muitoforte.
Eu soubeatravésdos jornais
[dadenúncia].

Asra.relata quefezamizade
comváriaspessoas que passa-
ramnacarceragemdaPF. Al-
gumacontinuou apósapri-
são? Nóséramos muitopró-
ximos, mas as amizades não
continuam, porque as pessoas
querem esquecer.Tudo aqui-
lo queremete[àprisão]você
preferenão lembrar.Eunão
tenho esse problema.
Eu tivemomentos muito
difíceis, ruins,comminhafa-
mília.Amigosque eu pensei
que tinha, eu não tinha. Pes-
soas da minhafamília, que é
pior ainda, ficaram de mal e
somos de malatéhoje. Mas
eutenhocertezaque as pes-
soas que euconheci lá,se eu
precisar de algumacoisa, eu
tenhocertezaquetêm me-
mória. Pelo menos eutenho.

Asra.reclama queaimprensa
atrata como“a mulher do de-
boche”.Mudaria algumaatitu-
de quefezpublicamente nos
últimos anos? Não, nenhu-
ma. Nãodeixaria defalar na-
da.Aminha primeiraentrevis-
ta [apósaprisão] foinaque-
la revista[Veja]ecustoumeu
apartamento, porquefoiope-
lo noovoparafalarem:“Vo-
cêestádebochando”.Qualo
problema de euterumsapa-
to Chanel?Eujátinha.
Eucontinuotendo meu sa-
pato Chanel, minha bolsa Cha-
nel.Tentaram, mas não tira-
rammeu sapato Chanel. Ape-
sar deteremdestruído parte
do meu armário,daminhage-
ladeira, porque eles [PF] fica-
ramcomraiva.Eaimprensa
deve ser livre.Você acha que
édeboche?Passaroque eu
passeieestar de pé aqui ho-
je... Eu nãomeconsiderora-
inha do deboche.

Comoestá sua situação finan-
ceirahoje?Como dizmeu
amigoPedro Corrêa:hoje eu
vivodacaridade dosamigos.
Eu descobri quenão precisa
detantoparaviver.Graçasa
Deusguardei bastantesapa-
to,roupa, bolsa.
Comer não pode muito, que
engorda.Passearagentepas-
seia, porquetemascasas dos
amigos. Shoppingédegraça,
parque Ibirapueratambém.
Lógico, precisa dedinheiro
paracomer,pagarcontado
condomínioeluz, masami-
nharealidadeéoutra hoje.

AImperatrizdaLavaJato
autores: NelmaKodama e
bruno Chiarioni.Ed.: Matrix.
r$ 34,90(168 págs.)

Nelma
Kodama,
Formada em
odontologia, se
mudou de Lins
(SP)paraSão
Paulo em 1993
enacidade
quecomeçou
aatividadede
doleira. Além
da Lava Jato, já
foicondenada
em primeira
instância na
Operação
Anaconda.
Ficou presa
por doisanos
etrêsmeses
no Paraná.
Beneficiada
por indulto
presidencial,
retiroua
tornozeleira
eletrônica em
agostode2 019

Marlene Bergamo/Folhapress



Amigos queeupensei
quetinha,eunão
tinha. Pessoasda
minhafamília, queé
piorainda,ficaram
demalesomosde
malaté hoje.Mas
tenhocertezaque
as pessoasque
euconhecilá[na
prisão], se eu precisar
dealgumacoisa, eu
tenhocertezaque
têmmemória.Pelo
menos eutenho


EunãosouLava Jato,
eu deviatersido
porumcrime:ser
doleira.Nãodevia
tersidocondenada
porter umamente
criminosa,como
diziaodoutor
[ex-juizSergio]
Moro.Pela minha
personalidade?Ele
épsiquiatra? Poxa,
seráqueadelenãoé?
Eo[ex-procurador-
geralRodrigo] Janot?
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