Vingança a Sangue-Frio

(Carla ScalaEjcveS) #1

amistoso, não a expressão mais habitual no seu repertório de expressões
faciais.


– Nada... – disse ela, os olhos a procurar a porta atrás de Harry – ...
absolutamente nada.


De novo na rua, Harry animou-se. Ouvira Astrid Monsen a fechar as trancas
no exacto momento em que ele se encontrou do outro lado da porta. Pobre
coitada. Era a última da sua lista e pôde concluir que ninguém o vira ou
ouvira nas escadas, na noite em que Anna morrera.


Depois de duas baforadas, deitou o cigarro fora.
Em casa, sentou-se na poltrona a olhar durante muito tempo para o olho
vermelho do gravador de mensagens antes de premir o botão PLAY. Era Rakel
a desejar-lhe uma boa noite, e havia um jornalista que queria um comentário a
respeito dos dois assaltos aos bancos. Depois disso rebobinou a cassete e
ouviu a mensagem de Anna: «E importas-te de usar aquelas calças de ganga
de que gosto tanto?»


Acariciou o rosto. Depois tirou a cassete e atirou-a para o caixote do lixo.
No exterior ainda chovia e, no interior, Harry fez zapping . Andebol feminino,
telenovelas e um concurso qualquer no qual se podia ficar milionário. Harry
deteve-se numa discussão de um canal suíço entre um filósofo e um
antropólogo social, a respeito do conceito de vingança. Um afirmava que um
país como os Estados Unidos, que representa certos valores como a liberdade
e a democracia tinha a responsabilidade moral de vingar ataques ao seu
território, já que esses também eram ataques aos seus valores.


– Apenas o desejo de retaliação e a execução do mesmo, pode proteger um
sistema tão vulnerável como a democracia.


– E se os valores que a democracia representa caem vítimas de um acto de
vingança? – respondeu o outro. – E se os direitos de outro país, conforme
estabelecidos pela lei internacional, forem violados? Que tipo de valores se
está a defender se se privam cidadãos inocentes de direitos, na sua busca pelas
partes culpadas? E quanto ao valor moral de virar a outra face?


– O problema é que temos apenas duas faces – disse o outro homem, com
um sorriso. – Não é verdade?


Harry apagou a televisão. Perguntou-se se deveria ligar a Rakel, mas
decidiu que era muito tarde. Tentou concentrar-se num livro de Jim
Thompson, mas descobriu que as páginas da 24 à 38 tinham desaparecido.
Levantou-se e começou a andar de um lado para o outro. Abriu o frigorífico, e

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