Público - 14.10.2019

(Barry) #1
Público • Segunda-feira, 14 de Outubro de 2019 • 13

POLÍTICA


Opinião


João Paulo Avelãs Nunes


Ao longo da época contemporânea,
fruto da aÆrmação do “paradigma
moderno”, os grandes sistemas
ideológicos — dos liberalismos aos
fascismos, passando pelos
tradicionalismos, pelos
positivismos e pelos socialismos —
têm adotado posturas cientíÆcas de
autolegitimação. Isto é, procuram
reforçar a respectiva validade
apresentando-se como conclusões
indiscutíveis e inevitáveis da
ciência e da tecnologia (ou da
teologia, da ÆlosoÆa, da ciência e
da tecnologia). Algo de semelhante
tem acontecido com
mundividências de cariz
transversal como os nacionalismos,
os darwinismos sociais e os
internacionalismos.
Se um determinado programa
político-ideológico corresponde à
realidade, ao bem e ao que é
saudável, todos os outros
posicionamentos só podem
decorrer de perspectivas
patológicas, criminosas ou
estrangeiras (iniciativa de
agressores externos ou de “inimigos
internos”). Deste complemento de
legitimidade têm decorrido quer
vectores de autoritarismo em
regimes liberais conservadores ou
demoliberais, quer ditaduras
autoritárias ou totalitárias: os
“outros” podem e devem ser
detidos e castigados para se
regenerarem, ser expulsos ou ser
eliminados quando se mostrarem
“irrecuperáveis”.
Da recusa de uma tal lógica
binária e maniqueísta,
tendencialmente incompatível com
a democracia, têm surgido dois
posicionamentos diferentes.
Segundo a perspectiva
pós-moderna, também binária e
maniqueísta, a vivência cívica deve
basear-se, apenas, em escolhas
deduzidas dos princípios
ideológicos justos — à escala
individual e no plano colectivo —,
resultando todas as tentativas de
correlacionamento entre ciências
sociais e vivência cívica em


modalidades camuÇadas de
alienação e controlo, visando a
reprodução de discriminações,
dominações e desigualdades
(tratar-se-ia de neocientismos).
Em sentido inverso, as leituras
neomodernas defendem, por um
lado, que a função das ciências deve
ser a produção de conhecimento
tão objectivante quanto possível
acerca da realidade; por outro, que
as sociedades e os sistemas políticos
têm todas as vantagens em
qualiÆcar-se recorrendo às diversas
propostas de reconstituição e
análise disponíveis. Se a atual
vivência cívica não pode deixar de
se apropriar, livre e criticamente,
das conclusões — parcelar e
temporariamente válidas embora —
das “ciências exatas” e das “ciências
da natureza”, o mesmo deve
acontecer, tanto com a
historiograÆa e com as outras
“ciências sociais”, como com as
humanidades.
Caso concordemos com os
pressupostos da crítica
neomoderna aos paradigmas
moderno e pós-moderno, devemos,
por um lado, contribuir para que
também a historiograÆa e as outras
ciências sociais produzam,
essencialmente, conhecimento o
mais próximo possível da realidade
(e existe hoje muita reÇexão
acumulada, de cariz deontológico e
epistemológico, teórico e
metodológico, ÆlosóÆco e teológico,
relativa a essa preocupação).
Devemos, por outro lado, encarar
com maior seriedade as tecnologias
— ou seja, saberes que visam intervir
na realidade, tendo em conta
conhecimento cientíÆco, mas com o
propósito de atingir objectivos de
natureza ideológica — derivadas das
ciências sociais, das humanidades e
das artes.
Devemos, ainda, exigir que as
entidades produtoras de
historiograÆa, de outras ciências
sociais e de tecnologias a elas
associadas se empenhem,
sistemicamente, através do ensino e
da formação, da comunicação
social e da animação cultural, na
divulgação do conhecimento
gerado e das respectivas
implicações. Devemos, Ænalmente,
tentar que os indivíduos e as
organizações das “sociedades
civis”, as instituições públicas de
cada Estado-Nação (ou

por um lado, reconstituir e analisar,
contextualizar e comparar
fenómenos sociais passados e
presentes; por outro, simular
hipóteses de evolução futura. A
título meramente exempliÆcativo,
lembramos as correlações quase
sempre veriÆcáveis entre
nacionalismos radicais,
protecionismos extremos ou
autarcias e conÇitos militares
globais; crises económicas e sociais
prolongadas e radicalização
ideológico-política; privação
continuada de direitos
sócio-laborais e perda de
competitividade, aumento da
conÇitualidade e eclosão de crises
económico-Ænanceiras.
Quanto a tecnologias sociais
também ligadas à historiograÆa,
presentes desde as primeiras
Civilizações Urbanas ou
estruturadas somente ao longo da
época contemporânea, elencamos
a didática da História e a divulgação
cientíÆca, o património cultural e a
museologia, o direito e a
diplomacia, a produção artística e o
jornalismo, o planeamento do
território e o planeamento
urbanístico, a cultura
organizacional e o marketing
territorial, o lazer e o turismo
culturais. Uma vez que algumas das

tecnologias em causa lidam com as
memórias históricas e com as
identidades histórico-culturais,
fenómenos inerentes às
comunidades humanas, trata-se de
instrumentos decisivos mas que, ao
mesmo tempo, passam muitas
vezes despercebidos.
JustiÆca-se, pois, nomeadamente
em Portugal, no Brasil e em outros
países da CPLP, que os defensores
de regimes democráticos e de
processos de desenvolvimento
integrado e sustentável
reivindiquem a ampliação do
investimento em pesquisa
historiográÆca e na presença da
historiograÆa nos sistemas de
ensino, em formação e em
divulgação cientíÆca; no aumento
da auto e da hetero-regulação
deontológica, epistemológica e
teórico-metodológica da
historiograÆa; na potenciação das
tecnologias também derivadas da
historiograÆa enquanto vectores de
criação de riqueza e de melhoria
das condições — imateriais e
materiais — de vida das pessoas.

História, memória,


museus e democracia


JustiÄca-se pois,


nomeadamente


em Portugal


e na CPLP, que
os defensores

de regimes


democráticos


reivindiquem mais
presença da

historiograÄa nos


sistemas de ensino


ADRIANO MIRANDA

Director do Departamento de
História, Estudos Europeus,
Arqueologia e Artes da
Faculdade de Letras da
Universidade de Coimbra

Estado-Nações) e as organizações
internacionais recorram
permanentemente a esse
conhecimento antes de fazerem
escolhas.
Face à impossibilidade ou à
ilegitimidade de utilizar as
comunidades humanas como
laboratórios e os indivíduos como
cobaias, a historiograÆa
permite-nos, de modo globalizante,
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