Público • Segunda-feira, 14 de Outubro de 2019 • 19
SOCIEDADE
Opinião
Cristina Marques
e Miguel Xavier
Na sociedade medieval, o
sentimento da infância não existia.
Não quer isto dizer que as crianças
fossem negligenciadas ou
abandonadas, mas apenas que a
criança não era reconhecida na
sua especiÆcidade e
individualidade.
Podemos dizer que havia uma
“quase indiferença”, patente, por
exemplo, na forma como era vivido
o luto de um Ælho, espelhada aqui
nas palavras de Montaigne: “Perdi
dois ou três Ælhos na ama, não sem
o lamento, mas sem o desgosto”.
Um longo caminho foi
percorrido desde então. A saúde
mental da infância e da
adolescência tem em Portugal
alicerces sólidos.
A psiquiatria infantil, ou
pedopsiquiatria, nasceu nos anos
50, substituindo a neuropsiquiatria
infantil. Adotou-se na altura uma
atitude inovadora, de saúde
mental, que defendia uma
abordagem preventiva e global da
saúde da criança e que já então
valorizava o trabalho em equipas
multidisciplinares, a ligação
intersectorial e a formação de
pessoal técnico competente.
Atualmente existe um modelo
organizacional estruturado dos
serviços hospitalares de Psiquiatria
e Saúde Mental da Infância e da
Adolescência.
O Plano Nacional de Saúde
Mental 2007-2016 foi um marco
importante em todo este percurso
— identiÆcou as principais
fragilidades organizativas e
estruturais e deÆniu normas
orientadoras para os serviços de
saúde mental.
Os cuidados devem ser
prestados por equipas
multidisciplinares, em que se
privilegie uma abordagem
integrada da criança/adolescente/
família e se valorizem as
intervenções em articulação com a
comunidade, nomeadamente o
trabalho de proximidade com os
Cuidados de Saúde Primários
(CSP) e escolas.
É certo que na última década
assistimos a um aumento
signiÆcativo destes serviços e
unidades hospitalares, do número
de camas de internamento e do
número de médicos especialistas.
Mas não basta.
Ao nível hospitalar, as carências
em recursos humanos continuam a
ser uma das maiores fragilidades
das equipas, sendo a
multidisciplinaridade quase
inexistente em muitas unidades e
serviços.
Nas escolas e nos CSP, a falta de
formação especíÆca dos
proÆssionais diÆculta a
identiÆcação atempada de muitas
situações e a capacidade de intervir
eÆcazmente. O investimento na
formação de técnicos de saúde
mental e de outros proÆssionais da
saúde, da educação, do sector
social e da justiça tem
necessariamente de ser um dos
vectores a investir — sabemos que
sem formação não há mudança.
A saúde mental deveria ser uma
prioridade da saúde pública e
transversal a todas as políticas. As
Experiências Adversas da Infância,
ACE’s na literatura internacional,
que incluem vários tipos de abuso
e negligência, e o seu brutal
impacto na redução do tempo
médio de vida são já reconhecidas
desde os anos 80 do século XX.
Conhecem-se fatores de risco e de
proteção e é consensual que a
política para a infância e
adolescência deve assentar numa
cultura de prevenção. Porém, esta
tem-se revelado outra das áreas em
falha — as intervenções de
promoção e prevenção têm sido
pontuais e a maioria não é
elaborada a partir de programas
validados.
Os estudos epidemiológicos não
deixam dúvidas quanto à
prevalência das perturbações
psiquiátricas nesta faixa etária. A
OMS estima que 20% das crianças e
adolescentes apresentam pelo
menos uma perturbação mental
antes de atingir os 18 anos e que,
mesmo em países desenvolvidos,
apenas 1/3 das crianças com
problemas signiÆcativos recebem
tratamento.
Sabe-se que muitas patologias são
persistentes e podem ter
consequências graves, duradouras,
com impacto signiÆcativo na
capacidade de inserção dos
indivíduos — cerca de 50% das
patologias psiquiátricas de evolução
prolongada começam antes dos 14
anos e 75% antes dos 24 anos. É fácil
entender que o peso económico e
social que determinam vai muito
para além do peso económico
direto inerente aos custos para os
Serviços de Saúde.
Mas mais relevante ainda é o
conhecimento que a intervenção
em idades mais precoces pode
prevenir ou reduzir a
probabilidade de incapacidade a
longo prazo e que esta é a ação com
melhor relação custo/eÆcácia para
contrariar o aumento contínuo dos
problemas mentais.
Podemos então interrogar-nos
sobre os motivos que levam a que a
saúde mental da infância continue
a ser tão pouco investida, ou tão
desproporcionalmente investida,
relativamente a outras áreas.
Temos a evidência cientíÆca
internacional — ainda que não
exista nenhum estudo
epidemiológico nacional que
determine a prevalência das
perturbações psiquiátricas antes
dos 18 anos — e sabemos os
programas e intervenções que
melhor resultam. O que falta para
que possamos assistir a uma
mudança de paradigma?
As palavras de Montaigne,
escritas no século XVI, hoje
chocam-nos.
Queremos acreditar que
evoluímos muito e que as crianças
são alvo de todo o nosso cuidado —
preocupamo-nos com a sua saúde
e educação, os sucessivos governos
ratiÆcam convenções, legislam
sobre os seus direitos, criam
organismos em sua defesa.
Quase nos fazem crer que a
saúde mental das crianças e
adolescentes é uma prioridade.
No entanto, quem conhece a
realidade dos serviços de saúde
mental da infância e adolescência e
dos seus parceiros comunitários
sabe que não é assim.
Ao longo das últimas décadas
tem prevalecido, num certo
sentido, uma “quase indiferença”
face a estas questões, que por
estigma ou mera negligência
continuam a Æcar esquecidas.
Quando estamos a terminar mais
uma legislatura, e apesar de alguns
avanços entretanto ocorridos (nova
rede de referenciação hospitalar,
embrião de equipas comunitárias,
Ænanciamento de alguns
programas de promoção e
prevenção), temos de nos
interrogar para quando a mudança
necessária.
Este é um desaÆo claro para a
próxima legislatura: Portugal não
pode continuar a desperdiçar a
oportunidade de reparar um erro
que é simultaneamente cientíÆco,
moral e de direitos humanos das
nossas crianças e adolescentes,
nomeadamente das mais
vulneráveis.
Saúde mental infantil – uma quase
indiferença de décadas
Portugal não pode
continuar a
desperdiçar a
oportunidade de
reparar um erro
que é ao mesmo
tempo cientíÄco,
moral e de direitos
humanos das
nossas crianças
e adolescentes
CLAUDIA ANDRADE
Cristina Marques é
pedopsiquiatra e assessora
do Programa Nacional para a
Saúde Mental; Miguel Xavier
é psiquiatra e director do
Programa Nacional para
a Saúde Mental