Público • Segunda-feira, 14 de Outubro de 2019 • 35
CULTURA
Opinião
António Carlos Cortez
Acordo Ortográfico – Um Beco com
Saída (Gradiva, 2019), da autoria
de Nuno Pacheco, é um livro
urgente. Trata-se, com excepção
do último texto, da reunião de
artigos que desde 2007 (é essa a
data mais antiga: 4 de Junho desse
já remoto ano) um dos mais
incisivos críticos do AO vem
assinando há mais de dez anos.
Nuno Pacheco junta-se, assim, a
outros combatentes por uma
causa justa, a que repudia um
acordo ilegal (não reconhecido
pela Norma Jurídica Internacional
e não ratiÆcado por todos os
países da CPLP).
Infelizmente, este acordo feito
por uma equipa de gente com
interesses enigmáticos (ou sem
interesse algum a não ser o
abstruso argumento de não
saberem estar quietos) fez já
vítimas. ReÆro-me a uma geração
inteira de alunos (e de professores)
sem qualquer consciência da
matriz etimológica da língua;
gerações prejudicadas no que
respeita, por essa via, à
compreensão semântica,
morfológica e fonética do idioma
de Camões. Creio ser esta a
vertente mais útil e por onde este
livro deve ser lido: a vertente
pedagógica.
O facto histórico é simples: este
Acordo OrtográÆco, que contou
com pareceres negativos de
reputados académicos e linguistas
(de Helena Buescu a António
Emiliano), de homens de letras e do
Direito (de Manuel Alegre ou Artur
Anselmo, a Vasco Graça Moura); de
poetas e escritores (de Gastão Cruz,
Maria Teresa Horta, a Mário de
Carvalho ou Pedro Mexia), a
políticos que não hesitaram em
considerá-lo absurdo (recordo
Vitorino Magalhães Godinho, que
foi ministro da Educação, num
extraordinário artigo publicado no
Jornal de Letras em 2010), outra
coisa não merece senão as
queirosianas farpas que Nuno
Pacheco, irónica e sarcasticamente,
aqui corajosamente lança.
Livro urgente, para além disto,
porque deveria ser lido pelos
professores, principais agentes da
formação linguística de crianças e
adolescentes e, por isso mesmo,
responsáveis pelo deplorável
estado a que a expressão escrita e a
expressão oral (o pensamento dito
e Æxado por escrito) chegou. Que o
digam os docentes do ensino
universitário, que vêem chegar às
suas salas de aula jovens que não
sabem construir frases, que não
dominam referentes
histórico-culturais (se tudo é
economia e gestão, não admira) e
que, valha a verdade, são
analfabetos funcionais (só sabem
mexer em telemóveis e seus
derivados...).
Creio que não se pode dissociar o
problema deste Acordo OrtográÆco
de um mais vasto problema de
mentalidades: Portugal, à
semelhança do que acontece um
pouco por toda a Europa, vive sob a
inÇuência do paradigma
tecnocientíÆco. É uma linguagem
vinda da gestão e da estatística,
misturada com expressões
eÆcientes made in Web Summit, a
que impera no sistema de ensino.
Um Acordo OrtográÆco desta
natureza mais não é do que o
alunos podem escrever bem.
Argumentos de base (e falsos)
dos acordistas: que este AO une a
língua portuguesa nas suas
variantes e que (pasme-se!) “a
língua está em constante
mudança”. Nuno Pacheco, que vê
bem como
ensino-ortograÆa-literacia e
pensamento se cruzam nesta
questão urgente do acordo,
denuncia essa tão fascista e
portuguesinha tendência para
querer “uniformizar tudo”.
Fala-nos, a reboque da
padronização global, da chegada
de “uma nova língua ao mercado”.
Com o programa Lince em uso e
abuso confesso, diálogos em Ælmes
legendados em “brasileiro”,
podemos ler pérolas deste quilate:
“Cadê meu avental? Quem pegou a
droga do meu cigarro?” (é
Sigourney Weaver quem fala,
lembra Nuno Pacheco). Não são
muito diferentes as frases
construídas e o português falado
pela geração que tem hoje entre os
15 e os 25 anos. Erros de
acentuação, erros de pontuação,
leitura silábica à saída do 3.º ciclo
ou do secundário, tudo isto é ainda
mais agudizado com este
famigerado acordo.
Quando “actual” é “atual”;
“eléctrico” passa a “elétrico”;
“espectador” é um “espetador”
(ainda que Malaca e os seus
defendam que palavras onde há
consoantes duplas que se articulam
tais consoantes devem manter-se:
“bactéria”, por exemplo), por que
razão se admite que um egiptólogo,
aquele que estuda o “Egito”, é
simultaneamente um especialista
em assuntos “egícios” e “egípcios”?
Se no Brasil se escreve “umidade”,
lá chegaremos, diz Nuno Pacheco.
Seremos, em Portugal, homens
sem “h”. Escreve o jornalista:
“Nivelando por baixo, temendo
talvez que o povo ignaro não
conseguisse nunca escrever como a
minoria culta, a língua portuguesa
foi perdendo parte das suas raízes
latinas” (p.21).
Nesta “Oliúde” em que se
transformou a língua portuguesa,
será ainda possível que um livro
desta importância não seja de
leitura obrigatória para alunos, pais
e professores? Nada espanta. Como
isto anda tudo ligado, deixo aqui
vincado o estilo sarcástico de Nuno
Pacheco: “A TLEBS foi dar ao AO. O
que faz até sentido: TLEBS, AO.” É
que, na verdade, tudo isto magoa: a
língua portuguesa anda para aí aos
trambolhões e não basta a
interjeição instintiva de quem se
sente magoado. Como Nuno
Pacheco, contra este acordo todos
deveríamos reagir.
O Acordo OrtográƊco
e um livro para ler e reler
Nesta ‘Oliúde’
em que se
transformou a
língua portuguesa,
será ainda possível
que um livro desta
importância não
seja de leitura
obrigatória
para alunos, pais
e professores?
PAULO PIMENTA
Poeta, crítico literário
e professor
reÇexo de uma degradação geral do
pensamento. Mas em Portugal, por
ausência secular de elites que
conheçam o chamado “país real”,
estes sinais de degenerescência
tendem a agravar-se.
No caso da nossa ortograÆa,
podemos seguir Nuno Pacheco:
“Em português nos
desentendemos”. O primeiro artigo
(a páginas 13...) sublinha, desde
logo, o português “que por aí anda
com as provas de aferição”.
Servindo-se da miopia dos
avaliadores (os sábios de gabinete
que polulavam no então Gave, hoje
Iave), a estes responsáveis pela
educação dos nossos Ælhos não
importa se o aluno escreve “açado”
ou “assado”, desde que se aÆra,
com semelhantes provas (!), que
compreende um texto.
O estilo corrosivo do autor é
proporcional à cegueira dos que
não querem ver. E são muitos. Não
poucas escolas aceitaram este
Acordo OrtográÆco por desleixo
ou, quando não, por aceitarem a
visão “moderna” de um qualquer
delegado de grupo de português
(ou um acólito ou acólita convictos
da sua ciência) que, não tendo lido
nenhum dos pareceres negativos
sobre o AO, logo perorou dizendo
que sim senhor, com este acordo os