Público - 14.10.2019

(Barry) #1
Segunda-feira, 14 de Outubro de 2019

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Era uma vez os curdos


E


m traços largos, no século
XIX os conservadores eram
imperialistas, os liberais
eram nacionalistas e os
socialistas eram
cosmopolitas. Mas foram os
liberais que acabaram por dar a
partitura a partir da qual seria lida
a política mundial até aos nossos
tempos. O nacionalismo liberal
tinha dois fundamentos ÆlosóÆcos
em tensão permanente: por um
lado, o princípio da
autodeterminação, que Jeremy
Bentham e John Stuart Mill
consideravam poder estender-se
dos indivíduos às nações, das
quais tinham a visão romântica de
serem unidades homogéneas com
um território, uma língua e um
povo estáveis; por outro lado, o
princípio utilitarista de
maximização da liberdade e
felicidade ao maior número de
pessoas possível, que não excluía,
no entanto, a possibilidade de
coartar essa liberdade e felicidade
a categorias de pessoas em nome
de um bem comum entendido de

Rui Tavares


forma muito pouco
desinteressada. Se o primeiro
destes princípios aconselhava à
emancipação nacional, o segundo
levava à reconversão do
imperialismo em colonialismo.
Se o que está atrás parece
complicado, simplifiquemos desta
forma: quando nasceu
definitivamente o
internacionalismo liberal, a seguir
à Primeira Guerra Mundial, só um
critério contava — ou eras uma
nação ou não tinhas direito à
autodeterminação. A pergunta
passava então a ser: consegues
provar, em particular aos que não
têm interesse em reconhecer-te,
que és uma nação? A paz de
Versailles e os tratados que foram
então celebrados deram o tiro de
partida para uma corrida
impiedosa entre quem conseguiria
ser reconhecido como nação e
quem ficaria de fora.
Definir o que era uma “nação”
só supostamente era tarefa de
linguistas, historiadores e
geógrafos; na prática, quem
mandava eram os homens-fortes
das nações que tinham chegado
primeiro. Quem tinha lugar à mesa
mantinha-o. Quem não tinha
ficava para trás à espera de convite
dos outros.
Nas negociações do Tratado de
Lausanne, de 1923, os

chegado ao fim da linha com o seu
princípio da autodeterminação,
confrontados que estavam com
uma realidade: na verdade, a
maior parte da humanidade não
vivia em nações homogéneas de
língua-território-povo, mas
sobreposta e misturada entre si
numa amálgama confusa de
identidades múltiplas unidas,
divididas e partilhadas entre
idioma, religião, classe e por aí
afora. Podia falar-se grego e ser-se
muçulmano, ser-se arménio
comerciante no meio do Líbano,
judeu alemão na Polónia, etc. Não
demorou muito ao
internacionalismo liberal oscilar
definitivamente para o princípio
do utilitarismo. Abandonaram-se
os curdos, os arménios, os judeus
e muitos outros à sua sorte (à sua
morte, em tantíssimos casos) e
decretou-se que não eram nações,
mesmo que fossem das
comunidades mais antigas do
mundo.
Quando, mais tarde, as
circunstâncias políticas o
permitiram, alguns destes povos
traídos conseguiram o convite
para um lugar para se sentar à
mesa com aquilo a que se
convencionou chamar (sempre
imperfeitamente) um
Estado-nação: Israel, a República
da Arménia. Mas as circunstâncias

nunca mudaram para os curdos.
Para eles, o ciclo foi sempre o
mesmo: negação de direitos,
limpeza étnica, serem utilizados
como pretextos para intervenções
externas e depois descartados
quando politicamente
inconvenientes para não se
contrariar os tiranetes locais. Foi
assim no Iraque de Saddam
Hussein. Assim vai ser entre a Síria
de Bashar al-Assad e a Turquia de
Recep Tayyip Erdogan.
Nos últimos anos, os curdos da
Síria construíram uma
comunidade política a que
chamaram Rojava; quando, à sua
volta, o ISIS punha as mulheres de
burca, os curdos instituíam a
paridade nos seus órgãos de
governo; enquanto o Estado
Islâmico cortava cabeças e
destruía património da
humanidade, os curdos de Rojava
arriscavam a vida em nome da
humanidade contra o fanatismo.
Sem eles, o ISIS não teria sido
derrotado. Mas agora parece que
está prestes a repetir-se a sina
curda.
Era uma vez os curdos. Era
muitas vezes a traição aos curdos.
Como tentar escapar a este ciclo
infernal será tema de uma crónica
futura.

Sem eles, o ISIS não
teria sido derrotado.
Mas agora parece
que está prestes
a repetir-se
a sina curda

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BARTOON LUÍS AFONSO


homens-fortes da Turquia e da
Grécia eram já Mustafá Kemal
Ataturk e Eleftherios Venizelos,
respetivamente. Ambos chegaram
a um acordo simples para as
populações do Império Otomano:
quem fosse cristão era grego;
quem fosse muçulmano era turco.
Deste acordo resultou o fim de
muitas comunidades e enorme
deslocação de populações. Muitos
albaneses, búlgaros e por aí afora
tiveram de se habituar a ser
“gregos”. Quanto aos muçulmanos
que não fossem árabes, mesmo
que não falassem turco, passavam
a ser “turcos”. Foi o caso dos
curdos.
Não se ignorava então que se
estava a cometer uma enorme
injustiça. Mas os liberais tinham

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