No estrangeiro, a década ia veloz, desafiadora, sobressaltada, e Portugal mais
distante das mudanças no mundo do que a própria geografia deixa perceber.
Entretanto, a vida anoitecera dentro do homem que amarrara o regime a
silêncios e resignações, a uma pequenez remediada, a um viver habitualmente
sem amanheceres radiosos.
Nos primeiros dias de agosto de 1968, tudo se precipitara.
Salazar batera com a cabeça de forma violenta ao sentar-se, ou a tentar
sentar-se, numa cadeira no Forte de Santo António do Estoril.
Mas o alarme só seria dado um mês depois.
Na madrugada de 7 de setembro, o chefe do Governo foi operado de urgência
a um hematoma, depois de passar a véspera a queixar-se de fortes dores de
cabeça.
O calvário do internamento, das cirurgias e dos altos e baixos de uma
recuperação que nunca viria a ocorrer, apesar de proclamada clinicamente,
duraria quase dois anos.
Nesse período, Salazar não perdera apenas a memória. Perdera também o
poder que, a dada altura, pareceu eterno.
Os sintomas de irreversibilidade da doença, as falhas de memória, as
incapacidades mentais, levaram à sua exoneração do cargo, sendo substituído
por Marcello Caetano.
O «homem de génio» dava lugar aos «homens como os outros», afirmara o
sucessor na tomada de posse.
Para trás ficavam décadas vividas no palacete de São Bento de forma que se
diria quase monástica não fosse o caso de o governante se entregar a mimos e
cuidados femininos liderados por uma governanta zelosa, mas irascível.
Quotidiano esse protagonizado por umas quantas criaditas de serviço que
Maria de Jesus contratava e despedia ao sabor dos humores e das necessidades.
Salazar sucumbiu a quase dois anos de agonia lenta, irónica e traiçoeira.
Alguém mais supersticioso notara que o número 27 o perseguira de forma
assombrosa nos altos e baixos de um percurso: a 27 de abril de 1928 tomou
posse como Ministro das Finanças; a 27 de setembro de 1968 foi exonerado do
cargo de Presidente do Conselho; na manhã de 27 de julho de 1970, sem um ai
que se ouvisse, faleceu.