A última criada de Salazar

(Carla ScalaEjcveS) #1

petróleo”. O meu pai, de tão inocente que era, pegou num talo com petróleo,
untou o bicho e chegou-lhe o fogo. Eu era miúda e ainda me lembro de ver o
burro a arder. Corri a chamar a minha mãe que abafou o bicho com um
cobertor e ainda ralhou ao meu pai», sorri Rosália, recordando «as gargalhadas
que o senhor doutor dava».
O Presidente da República fora posto ao corrente dos riscos que Salazar
correria se soubesse toda a verdade sobre a alteração governativa verificada em
consequência do seu apagão mental.
Em São Bento, pelas mesmas razões, a dona Maria impusera um segredo de
Estado: Salazar não pode saber que foi substituído na chefia do Governo, deve
pensar que ainda governa.
Em privado, encena-se um poder que já não existe, enquanto a morte não
vem. É um quotidiano sórdido, seguindo um guião teatral por vezes cómico e
despudorado, em nome de um bem maior: proteger o doente da verdade, adiar-
lhe a consciência da sua condição e circunstâncias.
As empregadas recebem ordens para representarem conforme o estabelecido.
«Fingíamos todas, tínhamos de esconder. Não podíamos comentar fosse o que
fosse à beira dele», lembra Rosália.
Os jornais são-lhe lidos por senhoras amigas com a preocupação de ocultar
os artigos e notícias que reflitam a realidade política vigente. José Manuel da
Costa, chefe de gabinete de Salazar nos anos de 1940, antigo diretor do Diário
da Manhã
, oferecera-se também, durante uma visita, para fazer a revista de
imprensa em voz alta. O ditador agradece, não sem remoques. «Estas senhoras
também mos leem, mas sem grande critério: leem-me notícias que não
interessam nada».


Convenhamos: as notícias que interessam também não aparecem refletidas
na maioria dos noticiários, apesar de um ligeiro suavizar da censura.
Aquele será o ano de críticas ao regime vindas dos meios católicos, fartos de
serem «cúmplices de uma conspiração de silêncio» à volta da Guerra Colonial.
Haverá surtos grevistas e a submersão de Coimbra numa revolta universitária e
na desobediência cívica, com prisões de estudantes à mistura, contestação que
contagiará também Lisboa e Porto. Será o ano do II Congresso Republicano de
Aveiro, mas também do regresso do bispo do Porto e de Mário Soares do
exílio, duas concessões de Marcello Caetano.
Em São Bento, ministros simulam ir a despacho, fazem de conta que escutam

Free download pdf