A última criada de Salazar

(Carla ScalaEjcveS) #1

gaguejando entre frases, soturno, caquético. O amigo Sollari Alegro guardará
desse dia uma outra gravação, de 8mm, na qual, apesar da evidente debilidade,
Salazar surge mais «saudável» aos olhos dos espetadores que mais choram a
sua ausência.
Mas findara-se o mito, algo que não precisa ser explicado.
A nostalgia e as ilusões de um regresso perdem-se definitivamente nas trevas.
Salazar é indiferente, Marcello torna-se indiscutível, dono do seu tempo, quase
sem passado. É ele o portador de esperanças que pretendem extinguir, de vez, a
lembrança, a fama e o prestígio de uma figura que os novos gestores de
problemas velhos querem ver desvanecida, rapidamente e em força.
Desde o início desse ano de 1969 que o pequeno mundo português mudara,
só os irredutíveis não tinham percebido.
Em janeiro, a RTP estreara «Conversas em Família», um programa em que o
novo chefe, Marcello Caetano, «entrava» em casa dos telespetadores «sem
formalismos, nem solenidades», com a afabilidade e a candura de um parente
próximo. Mudara o governante, mudara a televisão, agora mais apetecida e
acessível às massas.
Para trás ficara um tempo mediático enfadonho, cinzento e monocórdico,
conduzido e vigiado com rédea curta.
As «conversas» de Marcelo representam a inovação da propaganda do
regime e a sua suposta modernidade, mais conforme com a retórica da
primaveril abertura da ditadura. A nação, na sua maioria desgraçadamente
analfabeta, pobre e resignada, continuaria a viver um quotidiano a preto e
branco, mas Marcello falava de uma realidade «a cores», o que, em si, já era
uma novidade.


Em São Bento, sucedem-se os capítulos da narrativa de faz-de-conta.
Salazar é escondido do País e o País dele.
Mas percebe «com uma clareza espantosa» a verdade sobre a sua degradação
física.
Bissaya Barreto insiste, em desespero, que se obrigue o doente a trabalhar,
ler, escrever e pensar. Eduardo Coelho teme as consequências de um tal
esforço, por causa da fadiga, embora concorde ser tempo de pôr Salazar a par
do mundo exterior, «com a leitura dos jornais, sem peias ou esconderijos». A
solução «é política», ultrapassa o «ato médico».
Mas a pantomina segue o seu curso.

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