A última criada de Salazar

(Carla ScalaEjcveS) #1

falta-lhe a vontade, escasseia o discernimento, impõe-se o cansaço. Imagina
que tem de concluir relatórios, condecorar oficiais pelo «Dia da Raça» ou
informar ministros sobre «determinados assuntos».
Exige ser posto ao corrente de viagens, contactos, novidades, mas logo se
esquece. Pelo meio, sobressalta-se com o facto de não ter ainda pago os
honorários aos médicos que o rodeiam.
Deixa-se levar, silencioso e distante, por momentos de saudade, quase
reclamando memórias que o afaguem. «Anda, vai ali mostrar-te ao senhor
doutor», incitava a governanta virando-se para Rosália, quando «a pequena» ia
ao cabeleireiro aperaltar-se. «Eu tinha o cabelo comprido e ele gostava que eu
fizesse dois carrapitos. Recordava-lhe a mãe.»
Se a criadagem tinha algo em comum com Salazar era, nessa altura, o
desconhecimento do que se passava no mundo exterior. No caso dele, essa fora
uma prescrição médica, depois política.
Nos diálogos e nas visitas, havia que congelar o tempo em que ele vivera
para que pudesse sobreviver. Para lá dos muros de São Bento, nem Portugal
nem o mundo paravam, cada vez mais agitados, reivindicativos, sedentos de
liberdade. Mas às empregadas da residência oficial também não chegavam os
ventos de mudança que abanavam a sua própria condição.
Rosália desconhecia a Obra de Santa Zita, apostada na previdência e
formação das criadas. Não sabia que monsenhor Alves Brás, fundador da
instituição, aconselhava as mulheres associadas a verem na família que serviam
a própria «família da Nazaré»: no patrão, São José; na «patroa», Nossa
Senhora; nos meninos, o Menino Jesus. Nada saberá também da contestação
pública à inexistência de uma lei que regule o serviço doméstico das criadas e
serviçais, quando havia «leis até para os animais».
Em meados de 1969, a profissão está, na verdade, desprestigiada.
Da província, continuam a chegar raparigas dispostas a servir, mas logo que
surge emprego melhor, saem porta fora. Segundo um inquérito publicado por
essa altura, o ordenado médio de uma empregada doméstica nas principais
cidades era de 800 escudos por mês, 400 nos meios mais pequenos, já contando
com alimentação, alojamento e outros obséquios. Trabalha uma média de 16
horas por dia, sem contrato, nem qualquer proteção social. Quando sofre
problemas de saúde, é quase sempre despedida, ficando entregue a si mesma.
Rosália só em parte pertence a este mundo.
Apesar de trabalhar há vários anos na casa mais importante do País, o seu
ordenado mensal é, na verdade, uma gratificação que nunca ultrapassará os 300

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