A última criada de Salazar

(Carla ScalaEjcveS) #1

único local da casa que quase o fazia esquecer o facto de viver no coração da
cidade.
Quando se mudou para a residência, vigiara ele próprio a transformação dos
canteiros e dera instruções aos jardineiros. Costumava dizer que lhe era
impossível trabalhar «sem respirar o cheiro da terra» e sentir em volta «árvores,
moitas e flores».
Nos aniversários, as mais fervorosas amigas atulhavam o palacete de ramos e
coroas que seguiam depois para as igrejas de Lisboa. Salazar detestava que se
cortassem as espécies dos jardins de São Bento, das quais sabia até os nomes
mais complicados, e preferia pagar ele os ramos que enviava a uma ou outra
admiradora.
Aquando do final da sua primeira visita, Christine Garnier receberia, antes do
embarque no avião para o regresso a França, um grande ramo de cravos cor-de-
rosa, entregues em mão por um secretário da Presidência a mando de Salazar.
Sem se enternecer, a escritora tudo fez para se livrar das flores: apesar da
«inocente aparência», ela considerava os exemplares daquela espécie
portadores de «desgraça».
Por causa do casamento da filha do presidente do senado belga, o chefe do
Governo acabará também por fazer uma cena a Franco Nogueira a pretexto do
pagamento das flores que o ministro encomendara à embaixada em Bruxelas,
em seu nome.
Durante semanas, Salazar insistira em pagá-las, mas o interlocutor
desconversara, considerando a postura do Presidente do Conselho «um
pesadelo». Chegara a dizer-lhe que perdera a fatura, mas o ditador não
esquecera o assunto. «Eu pago sempre essas despesas», retomara. «É que eu
não preciso de nada, a minha vida acaba em mim.» Contrariado, Salazar lá
aceitou, por fim, que as flores entrassem nas contas do ministério. As centenas
de escudos que custaram acabariam por ser incluídas nas despesas de material e
expediente da embaixada portuguesa na Bélgica.
Em casa, aproveitavam-se as flores que chegavam todos os dias, de várias
origens, quase sempre oferendas de conhecidos ou conhecidas.
Do Estoril, apareciam cravos e rosas.
Da Madeira, por avião, eram despachados antúrios, estrelícias e belas e
exóticas orquídeas, enviadas pela senhora Garden, britânica, amiga do antigo
professor de Santa Comba e devedora de favores a Salazar por causa dos
negócios de aviação comercial do filho.
«O senhor doutor tinha sempre jarras com flores lindas no gabinete», recorda

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