A última criada de Salazar

(Carla ScalaEjcveS) #1

crença férrea na Providência, atribuindo-se o pedestal dos eleitos por desígnios
divinos e uma espécie de penitência que cumpria na gestão dos encargos do
Estado.
«Não sou um político, não o serei jamais», dissera, em 1922, acrescentando:
«Sou intelectualmente uma pessoa de gelo.»
Havia, desde Coimbra, razões para insuflar o ego e manter a postura de quem
nunca se engana e raramente tem dúvidas.
O primeiro a ler a figura para além da aparência foi Mateo Crawley-Boeevey.
O padre, de nacionalidade norte-americana, um dos mais íntimos confidentes
do Papa Pio XI, chegara à cidade dos estudantes em 1927, depois de uma
passagem por Évora. Pregava a devoção ao Coração de Jesus, a misericórdia e
a caridade pelo mundo e viera a Portugal disseminar o Reinado Social de
Cristo, incumbido pelo Sumo Pontífice. Era, segundo Franco Nogueira, um
homem «místico, eloquente, persuasivo, altamente inteligente», que trazia com
ele uma missão secreta: informar-se – e informar o Papa – sobre a situação da
Igreja nos países visitados e descobrir personalidades que pudessem melhor
servir a causa. Conhecerá Salazar em Coimbra, assumirá o papel de seu
confessor e guia espiritual. A ascendência do padre sobre o quase quarentão de
Santa Comba deixaria de lado os formalismos e tornar-se-ia paternal. Numa
noite de 1928, passara a mão afetuosamente pela cara de Salazar e traçara-lhe o
perfil: «A mim não me enganas. Por detrás desta frieza, há uma ambição
insaciável. És um vulcão de ambições.» O visado continuou mudo e quedo.
Cerejeira não deixaria, através dos anos, de adulá-lo, tendo sempre presente a
memória desses tempos. «Foste tu, entre todos os Portugueses, o escolhido para
realizar o milagre», escreverá ao amigo. «Bem sabes que Deus realiza os
planos da sua Providência, por intermédio dos homens que escolhe. Foste tu o
escolhido! Preparou-te de tão longe, com que cuidados!» A estas palavras, o
cardeal juntava outras, como as da irmã Lúcia, alegada vidente de Fátima, que,
no final da Segunda Guerra Mundial, fará chegar a Salazar um bilhetinho a
relembrar a graça divina que o protege, mesmo quando a época é de sacrifícios.
«É preciso fazer compreender ao povo que as privações e sofrimentos dos
últimos anos não foram efeito de alguma falta de Salazar, mas sim provas que
Deus nos enviou pelos nossos pecados», escreverá, em finais de 1945, a mulher
reverenciada pelos católicos portugueses.
No mesmo ano, Simone de Beauvoir visitara o torrão pátrio e daqui levaria
imagens dolorosamente inesquecíveis, menos santificadas. «Sob os tecidos
coloridos, aquela gente tinha fome; andava de pés descalços, o rosto fechado e,

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