A última criada de Salazar

(Carla ScalaEjcveS) #1

Escrevem-lhe viúvas sem sustento, e com filhos a cargo, que vivem em caves
dos bairros municipais e até um desempregado de Santa Comba, com mulher
natural do Vimieiro, que pede desesperadamente emprego, sem deixar de
felicitar Salazar «pela tão digna obra de engrandecimento nacional».
O rol de solicitações é extenso: recebe pedidos para arranjar lugares no
mercado a dois vendedores e vagas para marinheiros.
Deputados da Assembleia Nacional usam-na para interceder junto de Salazar
no sentido de serem recebidas determinadas pessoas.
É também confrontada com pedidos de dinheiro e súplicas de mulheres que
pedem «liberdade condicional» para os maridos presos. «Nem roupa para a
cama tenho, nem para vestir as minhas filhas», anota uma.
Chegam-lhe casos de separações, relatos lancinantes de esposas
abandonadas, com filhos a cargo. «A dona Maria tem tão bom coração para os
pobres», comenta-se, para justificar o recurso aos seus bons ofícios. «Se não
fosse V. Ex.a já tinha morrido à fome», escrevem.
Com frequência, a governanta é convidada para casamentos de amigos,
conhecidos e até de desconhecidos. Nem mesmo um conterrâneo de Salazar,
jardineiro do Forte de Santo António do Estoril, se coíbe de recorrer a ela para
que atalhe caminhos a bem da segurança de um futuro matrimónio: o homem,
que ficara noivo de uma pequena de Santa Comba, «neta do senhor António
Pássaro e afilhada de D. Marta, irmã de Salazar», pede um emprego na
petrolífera SACOR. Bate à porta certa: a governanta tem ações da empresa,
oferecidas pelo banqueiro Ricardo Espírito Santo.
De Díli, em Timor, um médico veterinário pede também um retrato de
Salazar para o gabinete de trabalho.
Outras cartas besuntam-na de encómios. «O seu silêncio é bem significativo
e mostra que segue à risca as pisadas do seu Senhor», redige um padre.
Uma tal de Aurora, aflita, pede para ser recebida com urgência «em virtude
de revelar um segredo» que conserva no peito.
E da Granja Avícola Portuguesa seguem, por carta, «instruções sobre a
vacinação dos pintos e a mudança de rações» para aplicar nas capoeiras das
traseiras do palacete.
Se alguma correspondência fica sem resposta, outra não cai em saco roto.
Foi, em dado momento, o caso de uma família que, tendo solicitado que um
soldado português em Moçambique trocasse o mato pelo escritório por causa
de doença na coluna, escreveu nova carta a agradecer a transferência do rapaz.

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