A Viúva Negra

(Carla ScalaEjcveS) #1

Na maior parte do tempo, porém, ele tentou esquecer a operação para poder
desfrutar de uma noite tranquila junto a sua família. Não ousou desligar o telefone, mas
não checou as atualizações de Paris. Não era necessário. Sabia que em alguns minutos
Natalie estaria saindo da clínica na avenue Victor Hugo, na banlieue de Aubervilliers.
Talvez ela fosse ao café comer ou beber algo, ou, talvez, fosse direto a seu apartamento
para mais uma noite sozinha. Gabriel sentiu uma pontada de culpa — Natalie, pensou
ele, também devia estar passando o Sabbath na companhia de sua família. Ele se
perguntou quanto tempo mais ela conseguiria continuar. Tempo suficiente, esperava,
para Saladin convocá-la.
Shamron ficou em silêncio durante o jantar, pois jogar conversa fora não era seu
forte. Depois de terminar seu café, ele colocou sua velha jaqueta de couro e levou
Gabriel ao terraço que dava para o oeste, na direção da superfície prateada do lago e da
imponente massa negra das Colinas de Golã. Atrás deles estava o monte Arbel, com sua
sinagoga antiga e sua fortaleza de caverna e, na encosta sudeste, uma cidadezinha
homônima. A cidade fora uma vila árabe chamada Hittin — e, muito antes disso, há
milhares de anos, fora conhecida como Hattin. Foi ali, a um passo do local onde Gabriel
e Shamron agora estavam, que Saladin, o verdadeiro Saladin, destruíra os Exércitos de
Roma.
Shamron ligou um par de aquecedores a gás para acabar com o frio agudo do ar.
Então, após se defender de um ataque sem entusiasmo de Gabriel, acendeu um de seus
cigarros turcos. Eles se sentaram em um par de cadeiras na beira do terraço, Gabriel ao
lado direito de Shamron, seu telefone apoiado na pequena mesa entre eles. A lua,
parecendo um minarete, flutuava acima das Colinas de Golã, jogando sua luz
benevolente sobre as terras do califado. De trás deles, através de uma porta aberta,
vinham as vozes de Gilah e Chiara e os gorjeios e as risadas das crianças.
— Você notou — perguntou Shamron — quanto seu filho se parece com o Daniel?
— É difícil não notar.
— É impressionante.
— É — respondeu Gabriel, com os olhos na lua.
— Você é um homem de sorte.
— Sou mesmo?
— Não é sempre que temos uma segunda chance de ser feliz.
— Mas com a felicidade — disse Gabriel — vem a culpa.
— Não há nada pelo que se culpar. Fui eu que o recrutei. E fui eu que permiti que
levasse sua mulher e seu filho com você para Viena. Se alguém devia se sentir culpado
— falou Shamron, gravemente —, sou eu. E me lembro dessa culpa toda vez que vejo o
rosto do seu filho.
— E toda vez que você coloca essa jaqueta velha.
Shamron rasgara o ombro esquerdo da jaqueta ao entrar às pressas no banco traseiro
de seu carro na noite do atentado em Viena. Ele nunca a remendara. Era uma lembrança
de Daniel. De trás deles vieram as vozes suaves das mulheres e a risada de uma criança

Free download pdf