ANJO CAÍDO

(Carla ScalaEjcveS) #1

— Porque Cario nunca foi muito cuidadoso ao escolher seus amigos. Mas estamos nos
precipitando — acrescentou Navot. — O Velho quer explicar o resto. Ele estava contando os
minutos para sua chegada.
— Alguma chance de você nos deixar pegar o próximo avião para fora do país?
Navot colocou a mão pesada no ombro de Gabriel e o apertou.
— Receio que não possa deixar você ir embora. Pelo menos por enquanto.
No coração de Jerusalém, não muito longe da Cidade Antiga, há uma alameda tranqüila
e arborizada conhecida como rua Narkiss. O prédio no número 16 é pequeno, com apenas três
andares, e está parcialmente escondido por uma robusta parede de pedra calcária. Uma árvore
de eucalipto precisando de poda sombreia as três minúsculas varandas e o portão do jardim
range quando é aberto. No saguão, há um interfone com três botões e os nomes
correspondentes. Poucas pessoas visitam os ocupantes do terceiro andar, pois eles quase
nunca estão presentes. Foi dito aos moradores que o marido, um homem taciturno com o
cabelo grisalho nas têmporas e olhos verdes intensos, é um artista que viaja muito e valoriza
demais sua privacidade. Os vizinhos passaram a desconfiar dessa história.
A sala de estar do apartamento tem várias pinturas. Três delas foram pintadas pelo avô
de Gabriel, o renomado expressionista alemão Viktor Frankel, e muitas são obras de sua mãe.
Também há uma sem assinatura, retratando da cintura para cima um jovem magro que parece
perseguido pelas sombras da morte. Encarando essa tela, como que perdido em recordações,
estava Ari Shamron. Como sempre, ele vestia calças cáqui, uma camisa branca de algodão e
uma jaqueta de couro com um rasgo no ombro esquerdo. Quando Gabriel, Chiara e Navot
entraram, ele apagou o cigarro turco sem filtro e colocou a guimba no prato decorativo que
fazia as vezes de cinzeiro.
— Como você entrou aqui? — perguntou Gabriel.
Shamron mostrou uma chave.
— Achei que tivesse pegado isso de volta.
— Você pegou — falou Shamron, dando de ombros. — O Departamento de
Acomodações fez a gentileza de me dar uma cópia.
Shamron se referia ao setor do Escritório responsável pela obtenção de esconderijos e
outras propriedades seguras para os agentes. O apartamento na rua Narkiss chegou a pertencer
a essa categoria, mas, havia já algum tempo, Shamron o transferira para Gabriel como
pagamento pelos serviços prestados — um ato de generosidade que, na opinião do Velho,
conferia a ele o direito de entrar ali quando bem entendesse. Ele colocou a chave no bolso e
fixou os olhos azuis aquosos em Gabriel. Suas mãos manchadas, grandes demais em relação
ao resto do corpo, estavam apoiadas na bengala de oliveira.
— Achava que não nos veríamos mais — disse ele. — Agora parece que Cario voltou
a nos unir.
— Não sabia que vocês se chamavam pelo primeiro nome.
— Cario? — O rosto enrugado de Shamron demonstrou um profundo desdém.
— Cario Marchese ocupou um lugar especial em nossos corações por um tempo. Ele é
a ameaça transnacional de amanhã, um criminoso sem fronteiras, crenças ou consciência
disposto a negociar com qualquer um, desde que o dinheiro continue entrando.

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