Público - 05.10.2019

(nextflipdebug5) #1
Público • Sábado, 5 de Outubro de 2019 • 21

SOCIEDADE


Opinião


Pedro Levi Bismarck


Num encontro de investigadores,
promovido pelo centro de estudos
a que pertenço (CEAU — FAUP), foi
pedido que apresentássemos o
conjunto dos nossos interesses e
projectos de investigação. A este
enunciado contrapus uma
pergunta que visava interrogar as
condições materiais e objectivas
capazes de tornarem possíveis
esses tais interesses e projectos de
investigação. O carácter
aparentemente inoportuno desta
pergunta (como foi, aliás,
apontado no dito encontro) é, na
verdade, a sua oportunidade,
porque ela dá conta, uma e outra
vez, de um lugar invisível dentro da
universidade: o lugar daqueles que
não têm lugar. Um lugar que é,
hoje, uma ampla fractura que
divide a universidade e,
simultaneamente, anuncia a
universidade do futuro. Quem não
percebeu o impacto e a
generalização da precariedade no
funcionamento de uma
universidade cada vez mais
desigual ainda não percebeu nada.
Durante quatro anos fui assistente
convidado na FAUP com um
contrato a tempo parcial — como
tantos outros docentes — com
percentagens entre os 17% e os 21% e
remunerações que variaram entre
os 266€ e os 291€. Esta fortuna
correspondia a três horas lectivas
por semana, que incluíam a
preparação de aulas e o
acompanhamento de trabalhos,
além de todo um outro conjunto de
tarefas. Três dias por semana eram
geralmente dedicados a actividades
lectivas. Posso dizer que se seguisse
à risca os termos do contrato,
jamais poderia ter exercido de
forma competente a minha
actividade docente.
A não renovação do contrato foi
comunicada por carta sem
qualquer contacto pessoal prévio.
Quando inquiri os serviços da
faculdade sobre o direito à
indemnização, foi-me avisado que
isso não constava do contrato. E, no


entanto, esta é uma obrigatoriedade
deÆnida por lei. Esta posição é
grave, mas é apenas natural, porque
os contratos a tempo parcial foram
considerados ilegais pelo próprio
MCTES, devido à fórmula de cálculo
das percentagens de serviço. Devo,
aliás, referir que é precisamente
esta contabilidade das percentagens
que me exclui de qualquer direito a
um subsídio de desemprego, por
não cumprir o número mínimo de
horas de trabalho exigidas pela
Segurança Social. Concluindo:
quatro anos de docência numa
instituição celebrada da UP, a
receber 279€ mensais, sem direito a
subsídio de desemprego e
(aparentemente) sem
indemnização.
Mas esta é a realidade de toda
uma geração: a precarização dos
assistentes convidados, dos
bolseiros, dos investigadores...
aliciados pelas promessas dos
ganhos futuros, iludem-se
continuamente enquanto
lubriÆcam as engrenagens da sua
própria máquina de exploração,
incorporando os mandamentos da
nova universidade neoliberal em
formato empresa: a competição, a
produtividade, a inovação, o
sentido de oportunidade para
farejar o dinheiro aí onde ele nunca
está. Estes são um imenso exército
de reserva, sempre pronto a
responder às necessidades e aos
caprichos das universidades:
docentes contratados e dispensados
ano após ano; investigadores que
acabam a dar aulas gratuitamente;
disparidade salarial gigantesca
entre docentes que dão o mesmo
número de horas e a mesma
cadeira. Exige-se doutoramento aos
assistentes convidados, mas sem
oferecer qualquer estabilidade — há
pessoas que pagaram mais em
propinas de doutoramento do que
receberam da universidade em
ordenados.
No caso especíÆco da instituição
que conheço, alguém há-de fazer o
bestiário das medidas que se
tomaram em nome da
sustentabilidade financeira e que
não Æzeram mais do que a conduzir
à penúria moral e intelectual. A
história desta faculdade é, aliás, o
desperdício e a desvalorização das
mentes mais brilhantes que já tive a
oportunidade de conhecer.
A precariedade não é um

horizonte é a sua própria
desqualiÆcação. A autonomia da
investigação não é senão uma
miragem. Os critérios de avaliação
da FCT exigem o retorno Ænanceiro
imediato dos projectos de
investigação, tal como a reitoria
exige que as faculdades recorram a
receitas próprias e aos privados
para garantir as condições básicas
do seu funcionamento. A obsessão
pelo Ænanciamento privado não
atravessa apenas a gestão corrente,
ocupou de forma ambígua e
problemática o ensino e a
investigação: conferências e
workshops realizados em nome de
um conteúdo pedagógico ou
cientíÆco revelam-se,
frequentemente, acções de
promoção de marcas. Iniciativas
conduzidas cada vez mais à medida
das oportunidades que surgem do
que projectos consistentes. No
entanto, a proÆssionalização da
investigação corresponde à
proÆssionalização de um ensino
reduzido à aquisição de
competências técnicas. As
linguagens empresariais do
empreendedorismo e do branding
tomaram conta do quotidiano
universitário, ao mesmo tempo que
os processos de participação
democrática foram depauperados.
Os professores vendem produtos e
os alunos são clientes, diz-se com
orgulho, quando o que está em jogo
é a sua mercantilização: os
primeiros precarizados e os

segundos endividados pelo peso da
propina.
Os centros de investigação são
laboratórios de experimentação de
todos estes mecanismos de
Ænanciamento, de
empresarialização e de
proletarização absoluta de uma
mão-de-obra altamente qualiÆcada.
A produção de conhecimento é
uma indústria. O critério é a
quantidade. As fraudes e a
banalidade das acções
multiplicam-se. É irónico e trágico
ver a pinderiquice desses
congressos, com catering gourmet e
guarda-sóis na relva, contrastar com
a precariedade que generalizam à
sua volta, com a precariedade em
que vivem os seus próprios
organizadores.
Ora, chegamos tanto a um ponto
de exaustão como de
incompreensão mútua. Para nós,
trata-se de uma questão de vida —
uma vida que mereça a pena ser
vivida. Enquanto a indiferença do
restante corpo docente não é senão
o sintoma do fechamento
progressivo do seu horizonte
crítico: a aceitação tácita e
silenciosa dos preceitos da
universidade neoliberal é, aÆnal, a
condição da sua própria
sobrevivência.
A precariedade não é uma
questão suplementar; é o corolário
de toda uma desqualiÆcação da
universidade. Aquilo que todos
deveriam, por agora, já ter
percebido é que o estrangulamento
Ænanceiro do ensino superior não é
consequência da crise, mas um
modo de governação. Governar
através da crise signiÆca: disseminar
a exploração e a desigualdade na
universidade, privatizar os seus
serviços e a sua dimensão pública,
dirigi-la exclusivamente às
necessidades do mercado e,
Ænalmente, dissipar da universidade
toda a função crítica social que
sempre lhe pertenceu. A
universidade não serve apenas para
ensinar, nem para produzir
conhecimento, mas tem uma função
social fundamental enquanto
espaço único a partir do qual se
pode interpelar a sociedade. E é a
dissolução desta condição que está
em jogo e cuja aceitação, essa sim,
terá um custo demasiado elevado.

O mal-estar da universidade


A precariedade


não é uma questão


suplementar;


é o corolário
de toda uma

desqualiÄcação


da universidade


ANA MARIA COELHO

Arquitecto

momento passageiro, mas um
modelo de relacionamento laboral e
social em implementação. A
promessa de uma vida
empreendedora cheia de
oportunidades maravilhosas acaba
sempre em ansiedade, depressão e
burnout. Estas são as doenças dos
precários, como sabemos pelos
inúmeros estudos realizados. À
diÆculdade natural de perseguir um
projecto de investigação próprio,
soma-se a ausência de estabilidade
social, emocional e de futuro. A
erosão do Estado social é a erosão
de uma geração que vive pior do
que os seus pais. E é a erosão da
democracia enquanto promessa de
ascensão social.
No entanto, a precariedade não
traz apenas a desigualdade extrema
para dentro da universidade, ela
reproduz um modelo cujo
Free download pdf