— Pois — fez uma cara sem graça —, é uma estupidez, não é?
— É, não é?
— Tu com uma amiga, de mão dada «no escurinho do cinema» — ensaiou a música da Rita
Lee, numa tentativa patética de fazer humor. — Ridículo, não é?
— O que é que é ridículo? A ideia de eu andar a enganar-te ou de eu conseguir arranjar outra?
— Hã?... não, tudo, a ideia de ires ao cinema com outra mulher, sei lá, não foste, pois não? —
A voz saiu-lhe fraca, quase suplicante. Zé lançou-lhe um daqueles seus olhares perscrutadores,
como que a dizer: «Queres mesmo continuar com essa estupidez?» e Graça revirou os olhos,
admitindo que estava a ser parva e disse, rendida: — Esquece.
E entretanto, sem Graça saber, Zé tinha passado por momentos de pânico, de ansiedade, de
compaixão por ela, por momentos de culpa e arrependimento e, o maior de todos os
sentimentos, de indignação. Não, agora que pensava melhor, nem sequer se sentira indignado —
antes fosse só isso —, sentira-se humilhado! É que, apesar da negação pouco convencida — e
pouco convincente —, no fundo, Graça achava ridículo que ele pudesse ter uma amiguinha «por
fora» por não lhe dar esse crédito. A ideia de ele ter a capacidade de conquistar outra mulher
parecia-lhe simplesmente descabida. Bem, uns dias atrás, ele próprio também não acreditava
que fosse capaz de seduzir uma mulher como Cátia, mas agora que a coisa estava, digamos,
encaminhada, sentiu-se irritado e triste por ver que Graça o tinha em tão pouca conta.
Antes de se casarem — nos tempos em que ela frequentava a faculdade de Ciências, onde Zé
a conheceu numa daquelas incursões a que ele e os amigos chamavam de «visitas de estudo» —
Graça admirava-o como se ele fosse o deus Apolo. Estava apaixonada e as pessoas
apaixonadas são atreitas à estupidificação. Zé era um jovem atlético, de ombros largos, que
usava camisolas de râguebi e dizia umas piadas incrivelmente divertidas. Amavam-se e
bastavam-se. Zé sabia que Graça o achava o máximo, sem defeitos, ou pelo menos sem defeitos
graves, mas as pessoas na situação deles tinham tendência para exaltar as qualidades e não ligar
tanto aos defeitos. E, neste aspecto, eles não haviam sido nenhuma excepção. Ora, a questão é
que, algures entre a paixão desenfreada que os levara ao altar e a descoberta da beleza de Cátia
que o levava às nuvens, Graça deixara de o ver como um deus atlético, charmoso e divertido.
Antigamente, Graça teria afiado as garras à mínima suspeita; hoje, perguntava-lhe,
casualmente, no sofá da sala, se ele não teria ido ao cinema com uma desconhecida. E o mais
triste era ela acabar a rir-se da pior hipótese, tão só porque olhava para ele e via um estereótipo
do Homer Simpson esparralhado no sofá da sala. Simpático mas inofensivo.
ZÉ NÃO QUERIA SER INOFENSIVO!!!!
Portanto, para Zé, tornara-se súbita e alarmantemente claro que precisava de fazer algo para
inverter com urgência este lamentável estado de coisas. As prioridades — assim enumeradas,
mas não necessariamente por esta ordem — seriam: inscrever-se num ginásio — já que a opção
do ténis havia falhado — para deitar abaixo a barriga de cerveja e recuperar um pouco do
orgulho atlético de outrora; levar Graça, senão a vê-lo com os olhos de antigamente, pelo menos
a não se rir da possibilidade de ele a enganar com uma mulher mais nova e terrivelmente sexy ;
investir em força nas enormes possibilidades de um romance com a bela Bellucci, e ponto final.
Zé acreditava firmemente que a vida de um homem se devia dividir em sectores estanques.
carla scalaejcves
(Carla ScalaEjcveS)
#1