VINTE E NOVE
Passaram-se semanas e o tempo não ajudou a melhorar nada. Graça manteve-se inabalável na
sua atitude de revolta. Quico voltou ao hábito antigo de esmurrar os colegas no colégio. Sara só
aparecia quando lhe dava na veneta. Cátia evitava-o e Tó decidiu que não podia continuar a
repartir o apartamento com ele. Disse-lhe que não era prático, porque ambos precisavam de um
quarto para cada filho e não havia espaço suficiente. De modo que Tó fez as malas e mudou-se.
Todavia, embora não conseguisse explicar muito bem o motivo, Zé ficou com uma sensação
incómoda de que o amigo não fora totalmente verdadeiro com ele.
O novo apartamento tinha uma salinha agradável com lareira. Era todo revestido a madeiras,
com um soalho que rangia acolhedoramente e um balcão em madeira escura que dava para a
kitchenette. Quem o projectara tivera por certo a intenção de o fazer parecer-se com uma
cabana de montanha. Tornava-se um pouco estranho, atendendo a que ficava num prédio em
plena cidade, mas resultava. Zé gostava de voltar para a sua sala, acender a lareira e ficar ali
hipnotizado com a dança das labaredas e um copo de uísque na mão.
Por vezes Sara aparecia sem avisar, passava a porta de entrada a despir-se sem se dar ao
trabalho de perguntar se havia mais alguém em casa e faziam amor frente à lareira, em cima de
uma manta quadriculada que já ali estava para esses imprevistos. Nessas alturas, Zé esquecia-se
de tudo. Sara trazia uma espécie de magia do bem-estar e fazia coisas mirabolantes e
incrivelmente fantasiosas como executar para ele a dança do ventre, tapada apenas com um pano
diáfano e ostentando um cinto dourado e uns brincos étnicos trazidos de uma viagem recente a
Marrocos.
Sara encorajava-o a esquecer a separação e dizia que sabia de muitos homens que gostariam
de se divorciar mas que não tinham tomates para o fazer. E que também conhecia muitas
mulheres mortinhas por dar uma facada no casamento mas que eram incapazes de o fazer, por
vergonha ou outra treta qualquer. «Irritam-me, aquelas mulheres que provocam os homens até os
deixarem com tesão até às orelhas e, quando eles avançam, acenam-lhes inocentemente com a
aliança», dizia.
Zé apanhou uma valente gripe e teve de passar uma semana em casa, a arder em febre. Nunca
como agora, em toda a sua vida adulta, se sentira tão desamparado, como se fosse uma criança.
Nestas ocasiões, Graça costumava tratar dele. Graça saberia que remédios ele deveria tomar,
teria à mão o número de telefone de um médico, preparar-lhe-ia uma canja quentinha, enfim,
faria com que ele se sentisse bem e seria tolerante enquanto ele se comportasse como um
menino mimado por causa da doença. Em contrapartida, desta vez Zé não teve apoio nenhum
porque quando telefonou a Sara, ela disse-lhe que fosse à farmácia e se deixasse de mariquices,
pois estava mesmo de saída para uns dias de trabalho em Viseu, de modo que «querido, vais ter
de te desenrascar sozinho». E quando os medicamentos que lhe deram na farmácia falharam, Zé