O Último Ano em Luanda

(Carla ScalaEjcveS) #1

e voltar para casa?! Agora, que tínhamos a guerra ganha, entregamos o ouro
ao bandido e vamos à vida?! Puta que os pariu a todos.


— De acordo — disse Nuno, só porque achou que devia dizer qualquer
coisa. — O que os portugueses fizeram por este país foi...


— A revolução, a democracia, está tudo muito bem — continuou o tenente,
embalado na dissertação, ignorando-o. — Eu também concordo com a
democracia, mas não é a democracia dos comunas, que querem oferecer
Angola aos cabrões dos russos — disse. E a morteirada continuava numa
cadência regular, tum... tum... tum... — Ou você pensa que isto vai ser para
os pretos? O tanas é que vai. Uma terra a nadar em petróleo, rica em
diamantes?! Não — abanou um indicador assertivo. — Nem pensar! Vai ser
só troca por troca. Saem uns colonialistas, entram os outros. Somos nós a sair
e os russos a entrar. — Pôs-se de pé, agarrou as calças pela cintura, puxou-as
para cima, a compor a farda. — Puta que os pariu — rosnou. Voltou-se para a
direita, gritou: — Sargento! Já chega dessa merda!


Os morteiros cessaram e o silêncio impôs-se. Nuno ergueu-se nas pernas,
voltou-se, pôs a cabeça de fora da trincheira para ver o que se passava. Ao
fundo, havia fumo a sair do meio do arvoredo e mais nada. Nem tiros nem
vivalma. Os soldados esperaram um ou dois minutos a verem se acontecia
alguma coisa, depois o tenente saltou da trincheira em primeiro lugar, dando
logo ordem a alguns dos homens para o acompanharem. Foram lá à frente,
quase até à linha das árvores. Nuno viu cinco soldados deitarem-se no chão,
com as armas apontadas para o interior escuro e imprevisível do arvoredo,
enquanto o tenente, sempre de pé, com os polegares enfiados no cinturão, à
cowboy , dava instruções aos outros como se fosse um mestre de obras.
Começaram a trabalhar, a erguer a cerca de rede, a desenrolar um rolo de
arame farpado.


Na trincheira não se ouvia um som e, se alguém dizia algo ao companheiro
do lado, era em voz baixa. Os minutos passaram lentamente, enervantes.
Nuno conseguia sentir a tensão no ar, nos sussurros dos soldados, nos dedos
suados colados aos gatilhos, à espera, nos olhos concentrados, que não se
desviavam do que se passava cinquenta metros à frente, onde os camaradas
trabalhavam depressa e com afinco em campo aberto. Finalmente, quando a
vedação voltou a ser erguida, ainda que de uma forma improvisada e bastante
atabalhoada, construíram uma segunda linha de defesa com o arame farpado.
Depois o tenente deu ordem de regresso à trincheira, onde voltaram a abrigar-
se sem chegar a haver troca de fogo.


O   dia estava  a   acabar  e   a   noite   prematura   a   descer  sob um  véu nebuloso    que
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