O Último Ano em Luanda

(Carla ScalaEjcveS) #1

e gastava a maior parte da manhã a lê-lo de uma ponta à outra, sentado à
secretária do seu escritório forrado de livros jurídicos, onde, antigamente,
prolongava as longas jornadas de trabalho no tribunal com intermináveis
serões dedicados ao estudo dos processos que haveria de julgar no dia
seguinte. Era a sua paixão e, não obstante viver a resmungar com o excesso
de trabalho e de dizer amiúde que não via a hora de se reformar e de deitar as
ralações para trás das costas, quando isso aconteceu ficou sem saber o que
fazer à vida. Não se conformava com a sensação de inutilidade que o afligia,
com os dias vazios, com o tempo que lhe sobrava sem préstimo. Acima de
tudo, custava-lhe abdicar da autoridade suprema que exercera durante décadas
na sua sala de julgamentos. Sem o poder não era ninguém, ou melhor, não era
senão um simples cidadão anónimo, esquecido pelos seus pares, perdido nas
suas memórias. Já não tomava decisões que mudavam vidas e estava num
impasse. Pouco depois de se retirar da vida activa, o juiz fizera uma visita
surpresa ao seu velho tribunal. Tinha sido recebido com inexcedíveis
simpatias. Desde os funcionários aos juizes, todos se mostraram encantados
por revê-lo. Não faltaram palmadinhas nas costas, palavras de apreço, piadas
sobre as partidas de golfe com que supostamente ele andaria a ocupar os seus
dias. Mas ao fim de alguns minutos as pessoas regressaram à azáfama do
costume e ele viu-se sozinho num corredor e compreendeu que já não tinha
nada a fazer ali. Nunca mais lá voltou.


De modo que transferiu a mágoa pessoal para o desconsolo dos jornais, da
televisão, da rádio. Seguia avidamente as notícias da revolução, cujas ondas
de choque se vinham prolongando ao longo de meses numa série estonteante
de golpes de teatro que, para seu grande espanto, iam atirando o país para a
ruína. O juiz tinha a sua rotina informativa: o jornal de manhã no escritório, o
telejornal da emissão da hora do almoço na sala, a rádio pela tarde fora e mais
notícias televisivas à noite. Durante as refeições resmungava sem parar contra
a política festivaleira da época e irritava-se supinamente com a ignorância da
mulher, que não percebia o que ele queria dizer quando falava de intentonas
imbecis, de nacionalizações a eito, de ocupações selvagens e da reforma
agrária comunista que, segundo as suas previsões, iria deixar o país a morrer à
fome em menos de um fósforo.


Regina e André vieram alterar o descalabro psicológico do juiz.
Resgataram-no do isolamento pouco saudável e da obsessão noticiosa que
tinha a virtude de lhe ocupar a cabeça, mas também o vício de lhe consumir a
alma. Durante o dia, o juiz cumpria na perfeição o seu papel de avô. Enquanto
Regina saía para tentar encontrar o fio à meada da sua vida, o pai fazia

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