Um Homem Escandaloso

(Carla ScalaEjcveS) #1

dar seguimento à conversa, sem a acompanhar, sem lhe pedir o número do telemóvel.
Transpirava abundantemente, tinha a testa perlada de suor e a camisa colada às costas, e não era do
calor que fazia, apesar de ser Verão. Nestas ocasiões corava, falhava-lhe a voz, enfiava as mãos nos
bolsos para não se notar como tremiam.


Foi para casa, cabisbaixo, caminhando lentamente, a arrastar os pés, com os olhos postos no chão,
ansioso por ir fechar-se no pequeno ateliê onde tinha o cavalete, as telas, as tintas, os pincéis, pôr-se
a pintar e apagar da memória Clara e aquele episódio embaraçoso.
Àquela hora não havia ninguém em casa. Os pais estavam a trabalhar — o pai numa agência
bancária na Almirante Reis; a mãe num pequeno infantário, na Amadora, onde era auxiliar de
educação —, portanto, estaria sozinho, graças a Deus.
Apanhou o metro, sentou-se direito, olhou em frente sem se dar conta dos passageiros que entravam
e saíam. Queria esquecer Clara, mas não era fácil, não conseguia desviar o pensamento para outros
assuntos sem voltar a ela em poucos segundos. Fez um braço de ferro com o cérebro, concentrou-se
para o esvaziar de qualquer raciocínio, não reflectir sobre absolutamente nada, ser uma rocha.
Debalde, o rosto dela, aquela voz fina, muito opinativa, assaltava-o à menor distração. Costumava
ser bom neste exercício de suspender os pensamentos, fazia-o quando se sentia cansado ou à noite na
cama, para adormecer, mas hoje o cérebro não lhe dava tréguas, não estava a resultar.
Teve pressa de chegar a casa e mergulhar no seu mundo de tintas, onde podia permanecer absorto
durante horas sem pensar em nada, senão pintar.
Sentia-se envergonhado com a forma desajeitada como lidara com Clara. Obviamente, causara-lhe
má impressão e, se ela pensara que ele era um tipo interessante que valia a pena conhecer, entretanto,
já perdera todas as ilusões. Um desastre... Ergueu os olhos, teve um assomo de reconhecimento,
levantou-se, passou entre as portas da carruagem no preciso instante em que começaram a fechar-se,
saiu à justa. Quem tivesse reparado nele teria pensado que ia ali um fantasma.


Morava na Penha de França, numa dessas ruas pacatas onde vivia sempre a mesma gente e nada
mudava durante séculos. Passou na mercearia para trazer fruta, pois apanhara o hábito de mordiscar
maçãs enquanto pintava, mais por o ajudar a concentrar-se do que para matar a fome. Entrou no
prédio, cruzou-se com a dona Amélia, a porteira, que usava uma bata florida de tecido ordinário
desde que João Pedro se lembrava dela. Era uma mulher pesada, sem idade, que ele julgara ser velha
desde menino.
— Boa tarde, João Pedro, já és doutor?
— Boa tarde, Amélia. Ainda não, faltam-me uns anitos.
Perguntava-lhe isto todos os dias.
Foi directo para o ateliê, atirou os livros e o saco da fruta para cima de uma cadeira, no canto ao
lado da porta, já concentrado no quadro que andava a pintar, sentou-se no banco alto à frente do
cavalete, esfregou uma maçã na camisa, deu-lhe uma dentada distraída enquanto observava o trabalho
inacabado do dia anterior. Era uma marinha, não pintava senão marinhas, adorava o mar com os seus
reflexos inesgotáveis, os barcos a baloiçar ao caprichos das marés. Já pintara dezenas de cenas
marítimas, algumas pacíficas outras terríficas. De momento, retratava o naufrágio tremendo de uma
esquadra antiga. Navios impotentes, pequenos no mar fustigado por ventos ciclónicos, eram
engolidos pelas paredes de água que se agigantavam sobre eles; marinheiros em pânico tentavam

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