Um Homem Escandaloso

(Carla ScalaEjcveS) #1

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Provavelmente, se João Pedro tivesse tido um ou mais irmãos teria desenvolvido uma
personalidade bastante diferente. A vantagem de não se ser filho único era uma pessoa ver-se
obrigada a lutar pelo seu espaço no seio familiar e, mesmo não sendo conforme a sua natureza,
desenvolver muito cedo o instinto de sobrevivência e de combatividade. Os irmãos competiam entre
si pela atenção dos pais, pelos melhores brinquedos, pelo último pedaço de comida na travessa. Era
inevitável lutarem entre eles enquanto pequenos e conhecerem uma época particularmente agressiva
durante a adolescência. Depois, em adultos, talvez se tornassem amigos definitivos; ou chegassem a
um entendimento cordial; ou, na pior das hipóteses, se odiassem para sempre e sem remédio. Nunca
se sabia. Porém, o filho único tinha bastas hipóteses de só descobrir muito mais tarde que, na vida,
as probabilidades estavam, quase sempre, contra ele, e que era preciso lutar, lutar sempre,
perseverar até ao último suspiro.


João Pedro não era nenhum guerreiro, nunca fora, pelo contrário, surpreendia pela incoerência dos
seus quase dois metros de imponente estatura, das suas mãos enormes e grossas. Tinha tudo para se
impor sem esforço, no entanto não se decidia a bater em ninguém. Desde criança, só muito
ocasionalmente e em último recurso, por se sentir encurralado ou sem escolha possível, é que
aquelas mãos brutais se abateram como martelos sobre alguma cabeça dura. Dir-se-ia até que mais
depressa se podia ver aquelas mãos a esmagar crânios brutalmente do que a pintar uma tela
delicadamente. Contudo, não passava de um gigante inofensivo, benigno, levemente encurvado com o
peso do mundo, assustado com a enormidade da vida.
As características mais constrangedoras de uma pessoa nunca se perdem, podem ocultar-se, mas
perduram debaixo da pele, teimosamente, contra todos os esforços genuínos para as erradicar, e
atraiçoam-na nos momentos críticos. João Pedro parecia outro, desinibido, eloquente, irresponsável
e feliz da vida, mas continuava a não ser capaz de dizer não a um espírito mais determinado que lhe
fizesse frente.


No dia seguinte aos encontros embaraçosos de Carol com Clara e Cristiane, João Pedro deu
consigo paralisado numa irresolução, vacilante, sem saber o que fazer e, portanto, não fez nada.
Deixou-se ficar em casa a vegetar frente à televisão, a beber cerveja, vagamente pensativo. No
fundo, desejava que Cristiane lhe telefonasse para que tivessem uma boa conversa e resolvessem o
que ele chamaria um mal-entendido; e preferia que Carol o deixasse em paz por agora, que lhe desse
tempo para se entender com Cristiane. Ansiava por fazer as pazes com uma e adiar um novo encontro
com a outra. Todavia, como não tomou nenhuma iniciativa, aconteceu tudo ao contrário.


O inverso de João Pedro era Carol, habituada a tomar o que não lhe ofereciam, sempre pronta a ir
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