glorioso para desmistificar a ofensa que elas lhe atribuíam!
Montou uma tela tão grande na sala que encaixava à justa entre o chão e o tecto. Encostou-a a uma
das paredes laterais e arrastou os móveis, amontoando-os a um canto para que não estorvassem.
Enrolou o tapete e estendeu um plástico por baixo da tela. E teve de trazer um escadote para chegar
lá a cima.
Pintou obsessivamente durante uma semana, dia e noite, entrando pelo fim-de-semana já sem saber
que dia era. Perdeu a noção do tempo, só comia o indispensável para sobreviver e só parava de
trabalhar por exaustão. Não dormia no sofá da sala porque o ar viciado das tintas e da terebintina se
tornava perigosamente asfixiante, mas subia com relutância a escada, entrava no quarto e caía na
cama sem se despir. De manhã, acordava ansioso por retomar o trabalho e esquecia-se de comer, de
tomar banho, de mudar de roupa.
André acorreu a casa de João Pedro depois de um pedido de socorro e foi encontrá-lo cadavérico,
imundo e malcheiroso, estendido de costas no chão da sala, de braços e pernas abertos. Por
momentos, julgou-o morto. Estava inanimado e tinha o aspecto miserável de um náufrago após um
mês à deriva. O ambiente era insuportável, correu a abrir as janelas para arejar a sala e chamou uma
ambulância. Depois, ajoelhou-se ao lado dele, teve uma hesitação e, embora com repugnância em
tocar-lhe, abanou-o pelos ombros e esbofeteou-o a medo com as pontas dos dedos, para o reanimar.
João Pedro balbuciou algo parecido com a palavra água, André trouxe-lhe um copo cheio e ajudou-o
a beber. Sorveu a custo a água que lhe dava à boca e voltou a deitar a cabeça no chão, enquanto
André corria a buscar-lhe uma almofada do sofá. Ficou assim, em silêncio, com um olhar
estranhamente contemplativo, visando o tecto, dir-se-ia que a sonhar de olhos abertos.
Veio o INEM.
— Está desidratado e precisa de um banho — declarou uma médica expedita, de rabo de cavalo e
mala de primeiros-socorros. — Vamos levá-lo para o hospital — disse.
Mas André já observava com mais atenção o quadro gigante na parede.
— Sim, sim, claro. Eu vou lá ter — disse-lhes, distraído.
A aflição passara e o marchand teve de se sentar no sofá, no outro lado da sala, esmagado com o
que via. Pensou que lhe dava uma coisa, levou a mão a tremer ao coração que lhe saltava no peito e
olhou por instinto para a porta por onde tinham saído os socorristas. Mas logo se voltou novamente
para o quadro, esquecido deles, do coração e de tudo. «Minha Nossa Senhora...», murmurou,
extasiado.
Era o quadro mais extraordinário de todos os que lhe tinham passado pelas mãos. João Pedro
excedera-se. Retratara a cena que ele lhe descrevera ao almoço no Gambrinus. Lá estava Cristiane e
Carol encavalitadas num João Pedro de camisa e calças abertas. Enfiavam as línguas dissolutas na
boca uma da outra, exactamente como ele contara. Era uma cena bela, expressiva, devassa, os três
envoltos por um fumo mágico. Vieram-lhe as lágrimas aos olhos, emocionado com a perfeição do
quadro. Desta vez, pensou, ele conseguira fazer muito melhor do que a colecção de retratos que o
tornara instantaneamente a celebridade do ano.