olho e lhe sorria aparvalhado e ela, incomodada, não tinha coragem de o enfrentar; a colega que se
deixava humilhar por um professor arrogante que a maltratava perante o resto da turma. Parecia-lhe
que as pessoas tinham receio de dar nas vistas e retraíam-se, como se preferissem ser invisíveis.
Estava na caixa do supermercado a pagar as compras. A cliente que a precedia trazia um saco a
tiracolo e disse à empregada que podia ver o interior do saco para verificar que não levava nada sem
pagar. Era uma mulher modesta, com medo que a empregada suspeitasse dela. A outra, que não lhe
perguntara nada, fez um sorriso condescendente, disse que não era necessário. Clara ficou a pensar
que os portugueses tinham esta característica subserviente em relação a todos os que, em qualquer
circunstância, detinham a sua pequena autoridade. Teve vontade de admoestar a mulher, de a
espicaçar, gritar-lhe que não fosse servil, mas não disse nada, convencida de que seria mal
entendida. Acabou de colocar as compras no saco e foi-se embora. Ela não era assim, defendia
sempre as suas ideias aguerridamente e não queria saber, não se importava de ser inconveniente.
Não que fosse imune ao que os outros pensavam dela, pelo contrário, toda aquela descontração e
rebeldia, o seu desprezo pelas aparências, escondiam um grande desconforto. Clara não se sentia
bem na sua pele porque não conseguia ser a rapariga encantadora que adoraria ser, que atraísse os
olhares dos rapazes e fosse desejada, como acontecia com a maioria das suas amigas de compridos
cabelos loiros, olhos cintilantes, roupas vistosas. As amigas sabiam ser irresistíveis e pôr a cabeça
dos rapazes a andar à roda, eram peritas a manipular emoções, mantinham-nos pendentes dos seus
caprichos, a sonhar com elas. Clara tinha a certeza de que não fazia sonhar ninguém. Não havia magia
nela e, se não fosse uma espalha-brasas descarada e divertida que todos apreciavam nos seus dias
mais inspirados, seria só a miúda invisível. Mas não lhe chegava, não era capaz de ser engraçada o
tempo todo e o estratagema tornava-se cansativo e desgastante. Tinha altos e baixos, momentos muito
animados e dias inteiros deprimida em casa, raramente o meio-termo.
A desfaçatez também lhe dava para ser agressiva, um comentário que lhe tocasse a
susceptibilidade merecia logo uma réplica violenta. Era um mecanismo de defesa. A insegurança
levava-a a responder à bruta, sem medir as palavras. Por isso, quem não a conhecesse bem poderia
pensar que fosse altiva e demasiado convencida para ser uma boa amiga. Por vezes excedia-se,
realmente, se se sentia atingida, se alguém dizia algo que aflorava a crítica ou que continha a mais
leve sugestão de ironia sobre ela, Clara ripostava de imediato com uma dose letal de sarcasmo. E
chegava a ser ofensiva, porque dizia a primeira enormidade que lhe vinha à cabeça, sendo a resposta,
normalmente, desproporcionada à provocação. O problema é que reagia intempestivamente e com
muita facilidade, sem medir as palavras, e podia gelar uma sala e deixar as pessoas incomodadas e
chocadas com a sua brutalidade.
Havia quem a evitasse e preferisse manter-se à distância por receio do seu lendário mau feitio.
Havia professores que já tinham passado a provação de se confrontarem com o humor amargo e
corrosivo de Clara. Ela desafiava-os, preparava-se muito bem e defendia corajosamente a sua
posição entrincheirada numa fila lá de trás, projectando a voz áspera para ter a certeza de que era
escutada em todo o anfiteatro. Travava duelos ferozes com os professores mais irascíveis nessas
aulas épicas que ninguém queria perder. O ambiente tornava-se pesado, quase se podia sentir o
cheiro da pólvora, e faziam-se apostas na expectativa de ver como o professor se iria safar. Clara,
irredutível, argumentava com inteligência e, mesmo quando não tinha razão, era difícil desalojá-la da