varrer o país, quem é que se interessava por quadros?
Clara trabalhava num ateliê de arquitectura, onde não exercia funções de desenhadora de projectos
mas assessorava o patrão, tendo-se tornado uma espécie de faz tudo da empresa. Interessava-se pela
profissão e, com o tempo, adquirira conhecimentos básicos de arquitectura que aplicara na sua
própria casa. Deitara abaixo paredes para ganhar espaço e ter uma sala ampla e cómoda onde
pudessem causar emoção os quadros de João Pedro, destacados por pontos de luz adequados para
provocarem impacto. Projectara uma cozinha requintada com todos os luxos modernos: o frigorífico
que cuspia gelo, o casulo da garrafeira repleta de vinhos vintage , a ilha cercada de bancos
acolchoados, as máquinas prateadas embutidas nos armários. Desenhara uma escada nova, toda em
acrílico transparente, com o seu truque de magia que os levava ao piso de cima como se fossem no ar
e que sacava exclamações elogiosas a convidados espantados.
João Pedro não se envolvera na obra de Clara e, embora reconhecesse com vaidade o bom gosto
dela, mantinha-se um recluso voluntário e irredutível do seu refúgio decrépito no andar superior, o
único espaço da casa onde não deixara Clara entrar com a fita métrica e grandes ideias para fazer
daquele buraco encardido — como ela dizia — um ateliê bonito e agradável. Não, ele queria um
lugar despojado que não fizesse pena sujar, onde não tivesse preocupações com as tintas derramadas
e com todos os outros despojos da arte. De resto, sentia-se mais profissional assim, sem concessões
às ostentações decorativas, sem frivolidades que distraíssem os olhos da tela deslumbrante sobre o
cavalete. Parecia-lhe que tinha ali uma barafunda séria, inteligente, civilizada, e que a grande arte
não se coadunava com estúdios bonitinhos e arrumadinhos.
A maior dificuldade de João Pedro surgia quando, ao fim de vários meses de tranquila clausura, se
via obrigado a sair da sua toca segura e aparecer em público, na galeria que lhe vendia os quadros,
para a inauguração. Uma semana antes do grande dia, começava a ficar ansioso e a comportar-se de
um modo estranho. Tornava-se irritadiço, errava pela casa desorientado e implicava com Clara pelos
motivos mais irracionais.
— Clara! — berra do cimo da escada.
— O que foi?! — responde ela da sala.
— Viste os meus óculos?!
— Não!
— Que chatice, não os encontro.
— Hum?!
— Não os encontro!
— Já viste no quarto?!
— Já! Não estão em lado nenhum.
— Então, não sei!
— Mas, porque é que mexem nas minhas coisas?!
— Quem é que mexeu nas tuas coisas?!
— Sei lá, podes vir ajudar-me?
— Diz?
— Podes vir ajudar-me?!