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Esta revoada de sentimentos confusos que lhe alvoroçavam o espírito trazia Clara melancólica e
com uma irritação latente que só se dissolvia quando chegava ao ateliê. Era pontual de manhã e
adiava a saída muito para lá da hora normal, porque já não tinha prazer em regressar a casa. A
empregada dava banho às crianças, deixava o jantar feito, a mesa posta, tudo em ordem, no entanto, a
mulher saía rigorosamente às dezassete horas e João Pedro via-se encruzilhado num fim de tarde
rabugento a que não estava habituado. O bebé chorava e os gémeos ficavam agitados, faziam
asneiras, reclamavam atenção. João Pedro não sabia para onde se virar, telefonava a Clara, mas,
ultimamente, ela desligava o telemóvel para não o aturar. Ele que se amanhasse, pensava,
melindrada. Era mais uma consequência da reacção em cadeia espoletada pelo ressentimento. A
frustração arreigava-se e Clara deixava-a extravasar em breves conflitos que provocava com
respostas tortas.
— Os gémeos dão cabo de mim — queixou-se João Pedro um dia, quando ela chegou.
— O que é que eles fizeram? — perguntou Clara, a largar a carteira, a tirar o casaco, o cachecol, a
pendurá-los no cabide da entrada.
— Diz antes, o que é que eles não fizeram!
Ela passou por ele sem lhe dar um beijo, parou à porta da sala, contemplou gravemente o
panorama, de mão na anca. Um pequeno furacão tinha atravessado a sala e deixara um rastro de
despojos infantis.
— Isso é porque os deixas fazer tudo — disse, acusadora. Avançou, abaixou-se, começou a
apanhar peças de Legos e a atirá-los bruscamente para o balde do jogo.
João Pedro foi sentar-se no sofá, irritado, a observá-la a recolher os cromos espalhados pelo chão,
os lápis e as folhas riscadas.
— Os miúdos já estão a dormir? — perguntou Clara, continuando a juntar meias e sapatos
pequeninos.
Ele revirou os olhos.
— Claro que estão — resmungou. — São dez horas, Clara. Não podes vir um bocadinho mais
cedo?
Ela, agachada, parou o que fazia, voltou-se para ele, incrédula. Mas tu és parvo, ou quê? , parecia
perguntar.
— Eu estive a trabalhar — replicou.
— Eu sei, mas era assim tão urgente que não pudesse ficar para amanhã?
Clara ergueu-se e, antes de sair da sala a abraçar a tralha das crianças, respondeu-lhe sem
piedade.
— Era urgente, é um projecto que está no fim do prazo. E alguém tem de ganhar dinheiro nesta