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Sentado num banco alto da cozinha a beber uma cerveja pela garrafa, João Pedro observava
Cristiane a movimentar-se à volta da ilha central, manejando uma faca com golpes lestos. Viu-a
cortar uma couve lombarda, deixá-la de molho no lava-loiças, picar a seguir uma cebola e fazer o
refogado numa panela alta. Ao mesmo tempo, descongelou salsichas frescas no microondas e
preparou uma segunda panela para fazer arroz. Mexia-se com gestos desembaraçados, competentes,
comprovando que sabia realmente cozinhar.
Iam conversando de coisas banais e era tudo agradável e fácil. Sentiam-se em perfeita sintonia.
Não obstante, João Pedro sentira um certo arrependimento e inquietação no preciso momento em que
a convidara para sua casa, se é que chegara a convidá-la, porque apenas sugerira a possibilidade.
Mas a reacção de Cristiane fora tão resoluta e entusiasmada que não lhe dera margem para recuar.
Por mais que quisesse passar a noite com Cristiane, João Pedro apercebeu-se, demasiado tarde,
que não estava completamente à vontade com ela em sua casa. Compreendeu que ainda não se
compenetrara bem da sua nova condição de recém-separado e talvez fosse disparatado, mas
psicologicamente aquele apartamento continuava a ser território de Clara. Era como se, de repente,
ela pudesse entrar por ali adentro e o surpreendesse em flagrante delito. Sabia que não estava a fazer
nada de errado, que já não lhe devia fidelidade, mas não conseguia evitar o desassossego.
Definitivamente, teria preferido ficar em casa de Cristiane, mesmo que não jantasse e passasse fome.
Enquanto ela cozinhava, João Pedro ia vigiando discretamente o grande relógio de parede e, com o
avançar da hora, foi descontraindo. Quanto mais tarde, mais improvável seria que Clara lhe fizesse
uma visita inopinada.
Ela não apareceu, evidentemente, nem telefonou, nem lhe enviou uma mensagem, nem deu sinal de
vida, nem coisa nenhuma. João Pedro ainda não percebera bem porquê, mas Clara estava furiosa com
ele e não tinha a menor vontade de o ver. Nos seus piores momentos, ele pensava que, realmente, ela
deveria estar um bocado chateada e desiludida e, por isso, se tinha ido embora, mas, na maior parte
do tempo, ainda se sentia perplexo com a estranha atitude de Clara. Mas, afinal, ela está chateada
porquê? Eu fui sempre assim, não mudei nada! O que é que lhe deu agora?
É verdade que Clara lhe explicara que era precisamente por ele não mudar que ela perdera a
esperança e desistia, não aguentava mais, queria uma vida normal com um homem normal, que não
vivesse fechado num quarto a pintar como um eremita. Ainda assim, João Pedro achava estranho.
Compreendia o exaspero de Clara, porque sabia que não era fácil lidar com o seu feitio muito
especial, porque se isolava e era distante e isso tudo — Clara chamara-lhe extraterrestre —, mas,
ainda assim, parecia-lhe que ela estava a exagerar. É óbvio que, se ele soubesse o que Clara fazia
com o patrão em cima da secretária no ateliê depois do expediente, teria uma visão mais ampla da
situação e todas as dúvidas se dissipariam num instantinho. Mas não sabia.