Público - 19.09.2019

(Ron) #1
4 • Público • Quinta-feira, 19 de Setembro de 2019

DESTAQUE


António Guterres O secretário-geral da ONU avisa: “A natureza está zangada. Não


podemos brincar com a natureza, porque ela devolve o golpe.” Mas acredita que as


metas para limitar o aumento das temperaturas ainda podem ser alcançadas


Entrevista
Mark Hertsgaard
e Mark Phillips

M


ostra-se conÆante na
reversão da crise
climática, apesar de lhe
chamar uma
“emergência”. António
Guterres,
secretário-geral das Nações
Unidas, vê “a sociedade a
mexer-se” e consegue “sentir um
novo vento de esperança a
soprar”. Em entrevista ao
consórcio de jornalistas Covering
Climate Now, de que o PÚBLICO
faz parte, diz que embora os
Estados Unidos não alinhem nos
esforços de redução de emissões
de CO2, há “cada vez mais países a
tomarem medidas”.
A conversa decorreu na sede da
ONU e foi conduzida por Mark
Hertsgaard, da revista The Nation e
fundador do consórcio Covering
Climate Now, e Mark Phillips, da
CBS News. Na próxima
segunda-feira, António Guterres
reúne na Cimeira da Acção
Climática, em Nova Iorque, líderes
de todo o mundo.
Mark Hertsgaard (M.H.): Tem
estado a trabalhar arduamente
no problema climático,
chamando-lhe “emergência”.
As pessoas, em todo o mundo,
estão assustadas. Querem
acção. Convocou a Cimeira das
Nações Unidas dedicada às
alterações climáticas porque os
governos não estão a agir. O que
é que as pessoas podem fazer
para que os governos se
esforcem mais e ajam como se
esta fosse, de facto, uma

“Governos têm de acelerar.


Porque estamos a perder a corrida”


emergência como diz que é?
O público em geral pode
mobilizar-se de diferentes formas.
Temos visto os jovens com uma
liderança fantástica nesse
aspecto. Vemos também a
sociedade e as organizações
não-governamentais. Vemos a
comunidade empresarial, as
cidades e regiões a fazer pressão
sobre os governos para que
actuem em prol do clima. Vimos
isso nas últimas eleições
europeias. E também vemos as
próprias cidades e empresas a
reduzir as emissões e gestores a
desinvestir nos combustíveis
fósseis. Vemos os bancos a ter em
conta o clima nas suas operações
Ænanceiras.
Por isso, vejo a sociedade cada
vez mais empenhada na acção
climática. O que eu desejo é que
toda a sociedade faça pressão
sobre os governos, para que
percebam que têm de acelerar.
Porque estamos a perder a corrida.
M.H.: É por estarmos a perder a
corrida que lhe chama uma
emergência?
Sim. Vejamos a sucessão de
catástrofes naturais cada vez mais
intensas e devastadoras. Eu
acabei de vir das Bahamas. É
chocante ver o que observei,
destruição total. A seca em África.
Não é apenas um problema para o
bem-estar das populações locais e
que as leva a deslocar-se. É um
problema que também alimenta o
conÇito e o terrorismo.
Vemos os glaciares a derreter.
Vemos o branqueamento dos
corais. Vemos as cadeias
alimentares em risco. Julho foi o
mês mais quente de sempre. Os
últimos cinco anos são os mais

quentes desde que há registos.
Vemos o aumento do nível médio
das águas do mar e a maior
concentração de CO2 na
atmosfera. É preciso recuar 3 a 5
milhões de anos para encontrar os
mesmos níveis de CO2. Nessa
altura, o nível da água estava dez a
20 metros acima do que está hoje.
Estamos a lidar com uma ameaça
muito dramática não só para o
futuro, mas também para o
presente do planeta.
M.H.: Uma ideia que tem
entusiasmado a sociedade civil
nos EUA e fora é o Green New
Deal. Uma política que pode
criar milhões de empregos ao
investir na mitigação das
alterações climáticas. Nos EUA,
um dos candidatos democratas
às presidenciais, Bernie
Sanders, defende aquilo que a
ONU tem vindo a dizer: que o
Green New Deal tem de ser um
esforço global e que os países
ricos têm de ajudar os países em
desenvolvimento a abandonar
os combustíveis fósseis. Bernie
Sanders propõe disponibilizar
200 mil milhões de dólares
para ajudar países em
desenvolvimento. Conhece a
proposta? É uma medida que
receberia o apoio dos países em
desenvolvimento na ONU?
O Acordo de Paris foi claro. Ficou
deÆnido o compromisso de
mobilizar 100 mil milhões de
dólares todos os anos, entre
dinheiros públicos e privados,
para apoiar a mitigação e
adaptação às alterações climáticas
nos países em desenvolvimento.
Como é óbvio, é essencial que
todos os países, incluindo os EUA,
desempenhem o seu papel,

porque sem esse apoio o impacto
das alterações climáticas pode ser
absolutamente devastador.
Por isso, sou a favor da
clariÆcação dos compromissos
assumidos em Paris, de modo a
garantir que aquilo que foi
acordado seja cumprido.
Muitas pessoas pensam que
aplicar taxas sobre o carbono
signiÆca mais custos para elas. Por
outro lado, os subsídios sobre os
combustíveis fósseis normalmente
são apresentados como um
benefício para a população.
Sejamos claros: os subsídios são
pagos com dinheiro dos
contribuintes. Eu não gosto de ver
o meu dinheiro, enquanto
contribuinte, a ir para o degelo dos
glaciares. Considero, então, que é
cada vez mais necessário explicar
às pessoas que o maior custo é o
custo de não fazer nada. O maior
custo é subsidiar combustíveis
fósseis, construir centrais
eléctricas a carvão e não
percebermos que estamos perante
uma emergência climática.
M.H.: Só para que fique claro,
conhecia a proposta de Bernie
Sanders sobre o Green New
Deal?
Claro. Qualquer atitude vinda de
um país como os EUA para
aumentar o Ænanciamento dos
países em desenvolvimento seria,
como é óbvio, bem-vinda. Isso
não signiÆca que queiramos
interferir nas eleições americanas.
M.H.: Claro que não.
Porque isso é algo que a ONU não
pode fazer.
Mark Phillips: Referiu um
conjunto de consequências
alarmantes que já estamos a
sentir, como os anos mais

quentes desde que há registos,
níveis recorde de degelo das
calotes polares ou tempestades
extremas. Passaram três anos
desde o Acordo de Paris. Está
desesperado agora? Convocou
esta cimeira porque o Acordo
de Paris não está a produzir o
resultado desejado?
Não, não estou desesperado.
Tenho esperança, porque vejo a
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