28 • Público • Segunda-feira, 9 de Setembro de 2019
MUNDO
As escolas não recebem comida
suÆciente, as Ælas para as cantinas
comunitárias não param de aumen-
tar, milhares de famílias Æcam sem
luz por não terem dinheiro para
pagar a conta. O desespero é tanto,
que milhares de pessoas foram esta
semana para as ruas de Buenos Aires
exigir ao Presidente argentino, Mau-
ricio Macri, que decrete o estado de
emergência alimentar. Faltam menos
de dois meses para as presidenciais
e tudo aponta que Macri as perderá
para o candidato peronista Alberto
Fernández.
“A verdade é que se o Governo
envia uma maçã para a escola, os
professores cortam-na ao meio”
para a dar aos alunos, disse o presi-
dente da Câmara de Ituzaingó,
Alberto Descalzo, ao Página12. “Nes-
tes últimos dois ou três meses o pro-
blema deixou de ser a obesidade,
com 15% das crianças a estarem sub-
nutridas”, acrescentou Pablo
Jarupkin, coordenador da Barrios de
Pie, na província Entre Ríos, ao mes-
mo jornal argentino.
A crise alimentar levou organiza-
ções da sociedade civil e partidárias
a criarem e reforçarem redes de can-
tinas comunitárias, com o Governo
pouco ou nada a fazer para as ajudar,
acusam. A procura das cantinas
aumentou entre 40 a 50% nos últi-
mos 12 meses e a pobreza cresceu
20% — há hoje mais de 13 milhões de
pobres, em 44 milhões de argenti-
nos, diz a BBC.
A situação é tão grave, que mani-
festantes acamparam nas ruas de
Buenos Aires para exigir ao executivo
que decrete o estado de emergência
alimentar, enquanto o Governo se
recusa, alegando estar já a disponibi-
lizar toda a ajuda necessária. “Preci-
samos da declaração de emergência
alimentar. Precisamos que esta crise
não se agrave, porque os danos sociais
são muito profundos e a única manei-
ra de o impedir é com uma política
concreta que crie emprego e garanta
o acesso a alimentos básicos”, disse
Gildo Onorato, dirigente do Movi-
mento Evita, ao Página12.
Crise profunda
Há mais de um ano que a Argentina
vive uma profunda crise. A sua moe-
da, o peso, não pára de desvalorizar
face ao dólar e a inÇação já ultrapas-
sou os 50%, destruindo o poder de
compra dos argentinos e levando
muitos para o desemprego (10,1% da
população activa) com o encerramen-
to de empresas, incapazes de pagar
as suas dívidas — as exportações caí-
ram 39,7% este ano. Greves e protes-
tos têm marcado o dia-a-dia do país,
à medida que o Governo avança com
cortes nos gastos sociais, despedi-
mentos na função pública e aumenta
os preços dos bens essenciais — a elec-
tricidade subiu 55% este ano, as por-
tagens 33%, o gás 35% e os transportes
públicos 38,5%.
“Macri não tem negado a crise,
mas ignora-a ao aÆrmar que as suas
políticas são necessárias para a
Argentina ter um futuro risonho. Os
eleitores não aceitaram esse discur-
so”, explicou ao PÚBLICO Alan Cibils,
coordenador do Departamento de
Economia da Universidade Nacional
de General Sarmiento, em Buenos
Aires, referindo-se aos resultados das
eleições primárias de 11 de Agosto —
47,35% dos votos para Fernández e
32,33% para Macri.
“É muito provável que Alberto Fer-
nández triunfe na primeira volta das
presidenciais” de 27 de Outubro, dis-
se ao PÚBLICO Miguel De Luca, poli-
tólogo da Universidade de Buenos
Aires e presidente da Sociedade
Argentina de Análise Política, subli-
nhando que o candidato peronista
apenas precisa de ultrapassar o mar-
co dos “45% dos votos”.
As eleições primárias, de seu nome
oÆcial Primárias Abertas Simultâneas
e Obrigatórias (PASO), são universais
e os eleitores escolhem os candidatos
que disputarão cargos de governação,
uma tentativa para evitar a fuga de
dólares do país.
Quando chegou à Presidência, em
2015, Macri prometeu acabar com a
pobreza e reformar a economia, mas
três anos depois pediu um emprésti-
mo ao Fundo Monetário Internacio-
nal (FMI) de 57 mil milhões de dólares
(o maior empréstimo na História da
organização, perfazendo 60% da sua
capacidade), em troca das já conhe-
cidas políticas de austeridade e cortes
nos gastos públicos. Entretanto, a
dívida privada duplicou e a dívida
soberana atingiu os 101 mil milhões
de dólares (86,20% do PIB) em 2018.
E pressupõe-se que já ultrapasse os
100% actualmente.
O Presidente argentino diz querer
renegociar a dívida soberana, mas
Macri não tem
negado a crise,
mas ignora-a ao
aÄrmar que as
suas políticas são
necessárias para a
Argentina ter um
futuro risonho
Alan Cibils
Professor de Economia
Crise assombra eleição argentina,
que Macri está a ponto de perder
O peso argentino desvalorizou face ao dólar, a inÅação supera
os 50%, o desemprego subiu para mais de 10% e a pobreza
aumentou 20%. As eleições presidenciais estão agendadas para
27 de Outubro e tudo indica que Mauricio Macri será vencido
pelo candidato peronista Alberto Fernández
América do Sul
Ricardo Cabral Fernandes
entre os quais o de Presidente. Quan-
do há mais de um candidato por par-
tido, escolhem deles. Quem não supe-
rar a barreira mínima de 1,5% dos
votos é excluído.
As eleições de Agosto anteciparam
de tal forma os resultados, continuou
De Luca, que os 15 pontos de diferen-
ça entre os dois candidatos “acaba-
ram por sepultar as expectativas de
reeleição do actual Presidente. “Tra-
ta-se de uma distância muito grande
num espaço de tempo curto e com
um contexto socioeconómico críti-
co”, reitera o politólogo argentino.
Para Andrés Malamud, politólogo e
investigador no ICS-Universidade de
Lisboa, “Fernández ganha na primei-
ra volta”.
Os juros da dívida subiram dos
64% para os 74% e o peso desvalori-
zou 30% face ao dólar quando se
conheceram os resultados das pri-
márias. A imprensa internacional
escreveu que os mercados receiam
a chegada ao poder do candidato
peronista, que já prometeu apostar
numa política económica de incen-
tivo ao consumo e criação de empre-
go. Mas os argentinos não parecem
vergar-se aos receios do mercado:
“Os mercados derrubam Governos,
mas não os escolhem”, sublinhou
Malamud ao PÚBLICO.
“O deteriorar das condições econó-
micas não são o resultado das elei-
ções, mas de três anos de intensas
políticas neoliberais e a actual crise é
mais uma vez o falhanço do neolibe-
ralismo, e não a perspectiva de um
candidato alternativo ganhar as elei-
ções”, disse Cibils.
Fragilizado nas urnas, o Presiden-
te tenta manter-se na corrida ao
implementar medidas de emergên-
cia. Adiou o pagamento da dívida, o
banco central argentino tem despen-
dido 300 milhões de dólares por dia
para evitar a desvalorização do peso
— 13 mil milhões de dólares já se eva-
poraram das reservas que hoje são
de 53,1 mil milhões de dólares — e,
agora, impôs controlos de capital na
compra e venda de divisas, em mais
Protesto em Buenos Aires contra Mauricio Macri e as políticas do FMI