Público - 09.09.2019

(Ron) #1
Público • Segunda-feira, 9 de Setembro de 2019 • 37

associada a uma capacidade cognitiva
muito alta. Nos chimpanzés e nos pri-
meiros humanos, o início do uso de
utensílios foi fulcral para o desenvol-
vimento da nossa cognição”, aÆrma
Eduardo Sampaio. Mas o que mais
impressiona o investigador é que o
desaÆo do frasco em concreto nunca
lhes ia aparecer no meio ambiente.
No oceano, e numa situação normal,
um polvo nunca teria de abrir um
frasco de vidro, mas se for instigado
a isso, fá-lo na primeira tentativa.
Em vários vídeos espalhados pela
Internet, vemos polvos a usar as “fer-
ramentas” do seu meio ambiente
para se protegerem de predadores.
Num em particular, os polvos apa-
nham um coco do fundo do mar e
andam com ele de um lado para o
outro. Quando vêem um predador
nas proximidades fecham-se dentro
dos cocos para protecção.

Um esguicho de tinta
Outra das características que é notá-
vel nos polvos, tal como explica
Vanessa Madeira, é o facto de se con-
seguirem camuÇar e adaptar ao meio
em que estão inseridos numa questão
de segundos. “A pele deles emita não
só as cores, mas também a textura do
material a que se estão a adaptar”,
refere a investigadora. Além disso,
caso a camuÇagem não resulte, para
os polvos há sempre um plano B (ou
C): um esguicho de tinta para distrair
o predador. “Se um polvo não quiser
ser avistado, o mais fácil é estar com-
pletamente camuÇado, mas se for
apanhado desprevenido, tem mais
opções”, diz Vanessa Madeira.
Dentro do seu organismo e à seme-
lhança dos chocos e das lulas, o polvo
possui uma espécie de saco com tinta,
junto a um órgão que funciona como
se fosse um fígado. Quando necessita,
o polvo expele essa tinta que vai sen-
do produzida à medida que é gasta.
“Acabam por lançar a tinta de duas
formas: ou como uma espécie de cor-
tina de tinta em que o predador Æca
sem ver e ele pode fugir ou de uma
forma em que a tinta sai mais espessa.
O predador pensa que o polvo ainda
ali está porque, apesar de não o estar
a ver, está a sentir qualquer coisa e
nesse tempo o molusco tem tempo
para fugir”, diz Vanessa Madeira,
acrescentando que muitas vezes a
cortina de tinta é o suÆciente para
retirar toda a visão ao predador.
Se em Portugal o polvo é dos seres
marinhos mais apreciados à mesa
(alguns até o comem no Natal), há
pessoas por todo o mundo que têm
parado de comer este ser marinho,
não porque não gostam do seu sabor,
mas porque Æcam a conhecer as suas
capacidades cognitivas. Para Norman
Kerle, professor universitário alemão
de 48 anos, a inteligência do polvo foi
a grande razão que o fez parar de
comer o animal, mesmo que conheça
pouca gente que esteja no mesmo

barco. Há dois anos, decidiu parar de
comer polvo, não “do dia para a noi-
te”, mas de forma gradual.
“Acho que não fui inÇuenciado por
ninguém, apenas me apercebi de que
o polvo é um tipo de animal impres-
sionante e que é melhor mantido
vivo. Faço mergulho e o polvo está
entre as criaturas mais interessantes
e intrigantes que podemos encontrar
debaixo de água e é geralmente mui-
to difícil de observar, é mesmo um
ponto alto do mergulho”, diz Norman
Kerle, que trabalha na Holanda.
Também Eduardo Sampaio conhe-
ce várias pessoas que não comem
polvo pelas mesmas razões, e Claire
Jackman é uma delas. A britânica de
45 anos que trabalha na área das
Ænanças conta que nunca o fez por-
que “o polvo é demasiado fofo para
comer”: “Sempre soube o quão inte-
ligentes eles eram e que tinham emo-
ções e sentimentos. Vários amigos
meus, pelo menos cinco, já não os
comiam e desde que comecei a mer-
gulhar que percebi que acabamos por
estabelecer uma conexão com o ani-
mal. Além disso, ninguém da minha
família come polvo porque são cria-
turas incríveis”, diz-nos.
Já Vanessa Madeira aÆrma que nas
visitas que faz com crianças e jovens
ao laboratório para ver polvos, muitos
acabam o dia a dizer que “nunca mais
os vão comer”.
A União Europeia tem mecanismos
para proteger não só os polvos, mas
todos os cefalópodes. Estes seres são
os únicos invertebrados que, pela sua
inteligência, são protegidos pela
directiva da União Europeia de 2010
“sobre a protecção de animais utili-
zados para Æns cientíÆcos”. Os cefa-
lópodes foram incluídos nesta direc-
tiva porque “existem provas cientíÆ#
cas da sua capacidade de sentir dor,
sofrimento, angústia e danos dura-
douros”. A directiva incentiva os cien-
tistas a não usar métodos que causem
sofrimento aos animais e provoquem
a sua morte desnecessária.
A equipa em que Eduardo Sampaio
e Vanessa Madeira estão inseridos
está a desenvolver um site com a
National Geographic de partilha de
informação, fotograÆas e vídeos de
explorações subaquáticas onde
observam os cefalópodes em acção.
E aí todos podemos testemunhar
quão inteligentes eles são.

ALEXANDRA WINKLER/REUTERS


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coordenada por Rui Rosa, tem estu-
dado os comportamentos e a Æsiono-
mia dos polvos. “Temos a tendência
para pensar na inteligência animal
como uma pirâmide em que nós esta-
mos no topo e depois vai descendo
para primatas, outros mamíferos,
répteis. Mas neste caso temos umas
‘amêijoas’ que perderam a concha e
que têm uma capacidade de lidar com
o ambiente e de mudar a sua decisão
conforme os desaÆos que o meio lhes
apresenta”, diz o investigador.
Mas, aÆnal, que características dão
ao polvo esta capacidade cognitiva
superior? Sabemos que os polvos são
cefalópodes e que uma das coisas que
lhes permite ter uma inteligência tão
diferentes dos outros (bivalves, mexi-
lhões, amêijoas, búzios ou caracóis)
é o facto de terem um sistema nervo-
so muito mais desenvolvido e mais
complexo por uma questão de neces-
sidade: ao perderem a sua concha
tiveram de arranjar forma de se adap-
tar ao meio ambiente em que estavam
inseridos e acabaram por desenvolver
mecanismos para lidar com ameaças
ou para se alimentarem.
“Por exemplo, se eles estiverem a
ser predados por um animal na areia
fogem para a coluna de água e se esti-
verem a ser predados por um peixe
camuÇam-se junto à areia. Num docu-
mentário que vi, conseguiram Ælmar
uma situação em que o polvo está a
ser predado por um desses tubarões
e envolve-se em pedras não só para
bloquear o acesso do predador, mas
também para não ser detectado”,
conta o cientista. “O polvo acaba por
usar isso em sua vantagem para con-
seguir fugir num momento de distrac-
ção do tubarão.”
Já Vanessa Madeira, também inves-
tigadora da FCUL, explica que, além
de três corações, os polvos têm um
cérebro bastante evoluído com zonas
que cumprem funções parecidas com
as dos vertebrados — uma zona mais
alocada à memória, dois globos ópti-
cos muito desenvolvido por causa da
parte da visão e ainda uma outra par-
ticularidade: “No fundo, os polvos
têm nove cérebros.” “Um na cabeça,
entre os olhos, e depois ao longo de
cada braço, oito no total, há um cor-
dão nervoso que tem milhões de neu-
rónios que funcionam de forma mais
ou menos independente do cérebro,
o que quer dizer que o braço pode
funcionar de forma autónoma e só
depois de realizar a acção é que a
comunica ao cérebro “principal.”
Esta peculiaridade em concreto
revelou-se muito importante para
deÆnir outro dos pontos que fazem
dos polvos um ser inteligente. A espé-
cie é “altamente treinável” para exe-
cutar várias tarefas que envolvam o
uso dos seus braços.
“Podemos treinar um polvo a abrir
frascos à prova de crianças e eles con-
seguem usar várias ferramentas,
característica que normalmente é

com o apoio
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