MARÇO 2019 Le Monde Diplomatique Brasil 15
um documento desclassificado, o De-
partamento de Estado recebia “alega-
ções fundamentadas relacionadas a
massacres em grande escala de ho-
mens e mulheres, crianças e indígenas
perpetradas pelo Exército em uma zo-
n a r e m o t a”.
Isso não impediu que Abrams pe-
disse ao Congresso que aprovasse o
fornecimento de armas aperfeiçoadas
aos militares guatemaltecos, argu-
mentando que “o progresso deve ser
recompensado e encorajado”. Em
2013, a Comissão pelo Esclarecimento
Histórico, criada sob os auspícios das
Nações Unidas, reconheceria o gene-
ral Ríos Montt culpado por “atos de ge-
nocídio” durante o encontro dos Maias
Ixil no Departamento de Quiché.
CITAÇÕES IMAGINÁRIAS
Promovido em 1985 ao posto de se-
cretário de Estado adjunto de questões
interamericanas, Abrams não parava
de condenar as organizações que de-
nunciavam os assassinatos em massa
perpetrados pelo general-ditador Ríos
Montt, e depois seus sucessores, Oscar
Mejía Víctores e Vinicio Cerezo Aréva-
lo. Em abril de 1985, a militante guate-
malteca Maria Rosario Godoy de Cue-
vas, dirigente do Grupo de Apoio
Mútuo, uma organização que reunia
mães de desaparecidos, foi encontrada
morta em um carro acidentado com
seu filho de 3 anos e seu irmão. Não
contente de apoiar a versão (pouco crí-
vel) do regime de que havia sido uma
fatalidade, Abrams perseguiu na justi-
ça os que tentaram abrir uma investi-
gação processual sobre o caso. Quando
o New York Times revelou uma carta
aberta contestando os números do De-
partamento de Estado em relação aos
assassinatos em massa, redigido por
uma mulher ela mesma testemunha
de uma execução sumária que havia
ocorrido em plena luz do dia em Gua-
temala City sem que a imprensa di-
vulgasse uma nota sequer, ele escre-
veu uma carta descaradamente
mentirosa ao redator-chefe. Chegou
a citar um artigo imaginário, publi-
cado em um jornal que não existia, a
fim de provar que esse assassinato
havia sido, sim, reportado pelos
meios de comunicação.
Em 1982, o New York Times e o
Washington Post publicaram arti-
gos evocando um massacre cometi-
do um ano antes por tropas forma-
das e equipadas pelos Estados
Unidos na região de El Mazote, em
El Salvador. Imediatamente se posi-
cionando em defesa dos assassinos,
Abrams declarou diante de uma co-
missão no Senado que os artigos
“não eram confiáveis” e que “visi-
velmente” se tratava de um “inci-
dente instrumentalizado” pelas
guerrilhas. Em 1993, a Comissão
pela Verdade das Nações Unidas
concluiu que 5 mil civis foram “deli-
berada e sistematicamente” assas-
sinados em El Mazote.
Em 1985, quando o ditador pana-
menho Manuel Noriega ordenou a
tortura e o assassinato por decapita-
ção do guerrilheiro Hugo Spadafora,
Abrams interveio junto ao Departa-
mento do Estado e diante do Con-
gresso para impor o silêncio sobre es-
se caso. “[Noriega] nos ajudou muito
[...], ele não representa um verdadei-
ro problema. [...] Os panamenhos
prometeram nos ajudar a combater
os ‘contras’. Se você persegui-lo na
justiça, não poderemos contar com
eles”, explicou.^5
Abrams estava envolvido no es-
cândalo Irangate em vários níveis.
Em 1986, um piloto mercenário nor-
te-americano foi abatido enquanto
transportava armas ilegais destina-
das aos “contras” nicaraguenses.
Abrams apareceu na CNN para cer-
tificar que o governo norte-america-
no não estava de nenhuma forma
envolvido com aqueles voos. “Seria
ilegal. Não temos o direito de fazer
isso e não fazemos. Definitivamente
não foi uma operação do governo norte-
-americano. [...] Se as coisas acontece-
ram dessa forma, se os norte-america-
nos foram mortos e seus aviões abatidos,
é porque o Congresso não agiu [para fi-
nanciar os ‘contras’]”, afirmou em ca-
deia mundial. Diversas vezes, assegu-
rou no Congresso que “a função do
Departamento de Estado [em termos de
ajuda aos ‘contras’] não era arrecadar
fundos, e sim de obtê-los do Congres-
so”. Era tudo mentira. As entregas de ar-
mas eram financiadas pelo tenente Oli-
ver North e pela CIA. Quando fez essas
afirmações, Abrams retornava justa-
mente de Brunei, onde havia arrecada-
do fundos para os “contras”. Em 1991, a
revelação dessas falsificações lhe valeu
uma condenação por dissimulação de
informação no Congresso.
LEGITIMIDADE DE “EXPERT”
Abrams não se envolveu com a admi-
nistração de Bill Clinton, mas foi recru-
tado por seu sucessor, George W. Bush,
para trabalhar no Conselho Nacional de
Segurança em questões relacionadas a
Israel e Palestina. Seu grande êxito na
época, revelado pelo jornalista David
Rose na Vanity Fair , foi impedir as elei-
ções de 2006 de terminarem com um go-
verno de coalizão entre Hamas e Fatah
na Cisjordânia e em Gaza, conspirando
com o segundo para obrigar o governo
eleito, dominado pelo Hamas, a se exilar
em Gaza.^6 Essa manobra selou uma divi-
são sem fim entre essas duas facções,
atualmente incapazes de negociar uma
paz duradoura com Israel (se é que Israel
estaria disposto a isso). Finalmente, se-
gundo uma investigação do jornal britâ-
nico The Guardian ,^7 Abrams teria enco-
rajado em 2002 o golpe de Estado militar
na Venezuela contra o governo democrá-
tico de Hugo Chávez (revertido após
imensa mobilização popular).
Nenhum desses fatos impediu o
Conselho de Relações Exteriores de aco-
lher Abrams entre seus membros per-
1 Jennifer Jacobs e Nick Wadhams, “‘Never Trum-
pers’ can get State Department jobs with Pompeo
there” [Contrários a Trump podem conseguir tra-
balho no Departamento de Estado com Pompeo
lá], Bloomberg, Nova York, 31 jan. 2019.
2 Citado em Grace Segers, “US envoy to Venezuela
Elliott Abrams says his history with Iran-Contra isn’t
an issue” [Enviado norte-americano à Venezuela,
Elliot Abrams, diz que caso do Irã e os contras não
é uma questão], CBS News, 30 jan. 2019.
3 Citado em Samuel Blumenthal, The Rise of the
Counter-Establishment. The Conservative Ascent
to Political Power [O levante do contrassistema. A
ascensão conservadora ao poder político], Union
Square Press, Nova York, 2008 (1. ed.: 1986).
4 Citado em Samuel Totten (org.), Dirty Hands and
Vicious Deeds. The US Government’s Complicity
in Crimes Against Humanity and Genocide [Ações
violentas e mãos sujas: a cumplicidade do governo
norte-americano em crimes contra a humanidade e
genocídios], University of Toronto Press, 2018.
5 Citado em Stephen Kinzer, Overthrow: America’s
Century of Regime Change from Hawaii to Iraq
[Derrubada: o século norte-americano de mudan-
ças no regime, do Havaí ao Iraque], Times Books,
Nova York, 2006.
6 David Rose, “The Gaza bombshell”, The Hive, 3
mar. 2008. Disponível em: <www.vanityfair.com>.
7 Ed Vulliamy, “Venezuela coup linked to Bush team”
[O golpe na Venezuela ligado ao time de Bush],
The Guardian, Londres, 21 abr. 2002.
manentes em 2009, conferindo-lhe
uma legitimidade de “especialista”.
Esse prestigioso think tank somente
manifestou algum embaraço quando
sua nova equipe foi repreendida pelo
presidente Barack Obama por ter de-
signado ao posto de secretário da De-
fesa Charles Hagel – um “antissemita”
que “parece ter problemas com os ju-
deus”, segundo o ex-presidente (Rádio
Pública Nacional, 7 jan. 2013). Ne-
nhum membro parece, por outro lado,
ter se incomodado por sua contribui-
ção nas manipulações eleitorais, mas-
sacres ou genocídios. Sua nomeação
ao Conselho de Relações Exteriores e,
atualmente, ao posto de enviado espe-
cial dos Estados Unidos à Venezuela
denota a intenção dos conservadores
em relação à política externa dos Esta-
dos Unidos.
*Eric Alterman é jornalista.