2 Le Monde Diplomatique Brasil^ M A RÇO 2019
VENEZUELA, ESTADOS UNIDOS E FRANÇA
Chegar
ao fundo
do poço...
e continuar
cavando?
POR SERGE HALIMI*
O
pior ainda não aconteceu a pon-
to de podermos dizer: isto é o
pior.” Nos dias que correm, a di-
plomacia francesa lembra esse
verso de Rei Lear. No fim do quinquênio
de François Hollande, acreditávamos
ter chegado ao fundo do poço;^1 alguns
previam mesmo um arroubo de orgu-
lho. Afinal, como os Estados Unidos exi-
biam seu soberano desprezo pelas capi-
tais europeias e seu desejo de fugir às
obrigações do Tratado da Aliança Atlân-
tica, por que não se aproveitar disso e
deixar a Otan, renunciar à política de
sanções contra Moscou e imaginar a
cooperação europeia “do Atlântico aos
Urais”, com que sonhava o general De
Gaulle há sessenta anos? Enfim, livres
da tutela norte-americana – e adultos!
Ratificando a autoproclamação de
Juan Guaidó como presidente interino
da Venezuela, a pretexto de uma va-
cância da presidência que só existe em
sua fantasia, Paris, ao contrário, voltou
a se pôr a reboque da Casa Branca e
deu seu aval ao que, aparentemente,
não passa de um golpe de Estado. A si-
tuação na Venezuela é dramática: in-
flação galopante, fome, prevaricação,
sanções, violências.^2 E mais dramática
ainda porque uma solução política se
choca doravante com o sentimento
de que tanto os que se insurgem con-
tra o poder como os que o perdem po-
dem acabar atrás das grades. Acaso
os dirigentes venezuelanos não esta-
riam considerando o caso do ex-pre-
sidente brasileiro Luiz Inácio Lula da
Silva, impedido de candidatar-se nu-
ma eleição presidencial que prova-
velmente venceria e condenado a 24
anos de prisão?
A decisão da França infringe a regra
segundo a qual Paris reconhece Esta-
dos, não regimes. Ela insufla também
Emmanuel Macron a encorajar a polí-
tica incendiária dos Estados Unidos. É
que a proclamação de Guaidó foi inspi-
rada pelos homens mais perigosos da
administração Trump, como John Bol-
ton e Elliott Abrams ( ver o artigo de Eric
Alterman, na p.14 ). Ninguém mais ig-
nora que o vice-presidente norte-ame-
ricano, Mike Pence, informou Guaidó
de que os Estados Unidos o reconhece-
riam... na véspera do dia em que ele se
proclamou chefe de Estado.^3
Em 24 de janeiro, Macron exigiu “a
restauração da democracia na Vene-
zuela”. Quatro dias depois, chegou de
ânimo leve ao Cairo, bem decidido a
vender armas suplementares ao presi-
dente egípcio, Abdel Fattah al-Sissi,
autor de um golpe de Estado rapida-
mente seguido pelo encarceramento
de 60 mil adversários políticos e pela
condenação à morte de seu predeces-
sor livremente eleito. Em matéria de
política exterior que se pretende vir-
tuosa, ainda poderemos fazer pior?
*Serge Halimi é diretor do Le Monde
Diplomatique.
1 Ver Dominique de Villepin, “La France gesticule...
mais ne dit rien” [A França gesticula... mas não diz
nada], Le Monde Diplomatique, dez. 2014.
2 Ver Renaud Lambert, “Venezuela, les raisons du
chaos” [Venezuela, os motivos do caos], e Temir
Porras Ponceleón, “Pour sortir de l’impasse au Ve-
nezuela” [Para sair do impasse na Venezuela], res-
pectivamente, dez. 2016 e nov. 2018.
3 Cf. Jessica Donati, Vivian Salama e Ian Talley,
“Trump sees Maduro move as first shot in wider
battle” [Trump encara a atitude de Maduro como o
primeiro tiro numa batalha mais ampla], The Wall
Street Journal, Nova York, 30 jan. 2019.
“
© Bernardo França