20 Le Monde Diplomatique Brasil^ M A RÇO 2019
DOSSIÊ ESTADO DE CHOQUE
Políticas da morte e seus fantasmas
As economias e as dinâmicas de massacre concreto e simbólico que atravessam o mundo contemporâneo e, de modo muito
especial, o contexto brasileiro deixam em seu rastro muitos corpos insepultos e uma esteira de silêncios e apagamentos de
variadas ordens. Confira o segundo artigo do dossiê “Estado de choque”, série de seis análises que publicaremos até julho de 2019
POR ADRIANA VIANNA*
[...] os que sabem
o que aqui se passou
devem dar lugar àqueles
que pouco sabem,
ou menos que pouco.
E por fim nada mais que nada [...]
Wisława Szymborska,
“Fim e começo”, Poemas ,
Companhia das Letras.
São Paulo, 2011.
O
esquecimento, como nos diz o
poema de Szymborska, é maté-
ria não apenas do trabalho do
tempo, mas também das mãos
que removem os entulhos que ficaram
no meio do caminho como marcas físi-
cas da guerra: vigas a serem erguidas,
portas que precisam ser postas em
seus caixilhos, vidros estraçalhados a
serem repostos. Em meio a tantas tare-
fas de refazer a vida ordinária – o var-
rer, o limpar, o cozinhar e o cozer – es-
tão também a remoção dos corpos e
mesmo a abertura das vias para que
por elas passem os caminhões que os
levam. E, mais que tudo, o sepulta-
mento não só de corpos, mas de seus
vestígios e mesmo de suas lembranças.
Limpar, polir, deixar de falar. Substi-
tuir a narrativa por gestos e reticências
que, ao mesmo tempo que lembram,
parecem querer afastar a lembrança.
O fim e o começo que dão título ao
poema não estão assegurados pelo ar-
mistício, mas são fruto desse trabalho
íntimo e coletivo de não lembrar, de
fazer esquecer, de deixar que o ruído
dos dias e o passar das gerações pro-
duza o fim em meio a novos começos.
Se o silenciar pode ser condição fun-
damental de refazer tanto a vida cole-
tiva quanto as vidas individuais, pro-
tegendo não só os corpos, mas também
os laços de afeto e a própria sanidade,
é importante notar que ele não cobre
ou extingue tudo o que foi visto, sabido
e experimentado.
As economias e as dinâmicas de
massacre concreto e simbólico que
atravessam o mundo contemporâneo
e, de modo muito especial, o contexto
brasileiro deixam em seu rastro muitos
corpos insepultos e uma esteira de si-
lêncios e apagamentos de variadas or-
dens. Como argumenta Vera Telles no
primeiro artigo deste dossiê, vivemos
“sob a égide das obsessões securitárias
e da lógica bélica e militarizada de ges-
tão das populações indesejadas”.^1 Nes-
se quadro, os mortos continuamente
borrados sob a capa da irrealização
que termos como “traficante” ou “ter-
rorista” produzem são figuras parado-
xais da hipervisibilização e do apaga-
mento. Seguem sem nomes, apenas
como “suspeitos”, tornados indistintos
em corpos racializados e territorializa-
dos como negros, periféricos, favela-
dos, estrangeiros. Sua singularização é
impossibilitada não por qualquer se-
melhança de fato entre eles, mas por
estar assentada nas imagens espec-
trais que os contornam: o selvagem, o
outro incivilizado, o bárbaro. Como
lembra Fanon, são aqueles que habi-
tam a cidade do colonizado, espaço on-
de vivem e morrem não se sabe como.^2
Para combatê-los não deve haver
economia material ou discursiva, uma
vez que é o próprio excesso que garante
o sucesso das tecnologias de terror co-
lonial.^3 Máscaras com imagens de ca-
veira; blindados que entram nos terri-
tórios favelados anunciando que
vieram buscar almas; rastros de san-
gue que têm de ser lavados por vizi-
nhos. Tiros que vêm às centenas do
céu, dos blindados aéreos que ceifam
vidas que permanecem anônimas em
sua maioria e que às vezes, só às vezes,
ganham a singularização do rosto de
menino em camisa escolar, como no
caso de Marcus Vinícius, assassinado
na Maré em 2018. A presença de sua
mãe, Bruna Silva, segurando a camisa
escolar suja de sangue rompeu a invisi-
bilização que cobriu todos aqueles que,
ao contrário do menino que seguia pa-
ra a escola, podiam permanecer no
campo dos “suspeitos” ou possíveis
“envolvidos”. Assim como Bruna, tan-
tas outras mães, Dalva, Ana, Debora,
Edna, Ana Paula, Fátima, Fatinha, Vera
e muitas mais, vêm carregando as fotos
de seus filhos para as ruas e para den-
tro das malhas do Estado, buscando
romper o apagamento dessas mortes e
dessas vidas. Basta, porém, confron-
tarmos as estatísticas para perceber-
mos que se trata de um percentual
muito pequeno diante daqueles que
seguem anônimos.
Em 2018, no Rio de Janeiro sob in-
tervenção militar, foram registradas
oficialmente 1.532 mortes cometidas
por policiais. Este ano de 2019 mal co-
meçou e os números seguem impres-
sionantes: cento e sessenta mortos
apenas no mês de janeiro,^4 incluindo a
brutal execução de quinze pessoas no
Morro do Fallet, sendo dez delas em
uma mesma casa. Se movimentos so-
ciais se empenham em denunciar e
evitar o apagamento dessas ações bru-
tais sob o manto dos registros variados
de “confronto”, um deputado recém-
-eleito – o mesmo que fez questão de se
exibir rasgando a placa em memória
da vereadora Marielle Franco – defen-
de a homenagem aos policiais encar-
regados da ação. Afinado a ele, o gover-
nador do estado, Wilson Witzel,
declarou de imediato que a ação poli-
cial era legítima. Há muitos corpos a
serem removidos e há também dispu-
ta em torno de suas marcas. Há o san-
gue que deixam nas paredes enchar-
cadas da casa ou nos caminhos por
onde desceram; há os registros buro-
cráticos que buscam desencarná-los e
há as categorias discursivas que tin-
gem as posições e perspectivas políti-
cas dos que as escolhem. Nunca é rápi-
do ou simples fazer que a guerra seja
esquecida e se possa deitar no chão
com o capim entre os dentes, como no
verso final do poema de Szymborska.
As operações em torno do dizer ou
não dizer, do recordar ou do esquecer
não são exatamente binárias, porém.
Elipses, alegorias, gestos, ambivalên-
cias e silêncios de grande capacidade
expressiva inscrevem-se nos mean-
dros das coisas que parecem findas,
mas que talvez nunca o sejam. Acom-
panhando há alguns anos redes mili-
tantes de familiares de pessoas mortas
por forças policiais, vejo nas imagens
em torno da maternidade algo que su-
pera em muito o potencial de uma me-
táfora. A dor no útero que não cessa, o
cheiro de menstruação que acompa-
nhou a mãe todo o dia antes de saber
da morte do filho, a ligação espiritual
que não se rompe porque a carne cha-
ma, o sangue puxa e a condição mater-
na se faz perene. É no corpo e por meio
do corpo que circula esse vínculo que
a morte não desfaz e que, sobretudo, o
soterramento estatal sob categorias
administrativas como “auto de resis-
tência” e similares não consegue en-
cerrar. Carne, espírito, memória e afe-
to criam uma copresença entre mortos
e vivos que tem forte alcance político.
É por essa copresença que são cos-
turadas memórias privadas e espaço
público, produzindo ruídos no silên-
cio que cerca suas mortes. As mães
apresentam-se como figuras do trau-
ma político, marcadas pelo que a an-
tropóloga Grace Cho denomina de
Pessoas executadas pela Polícia Militar que portam réplicas de armamentos, os chama-
dos simulacros. Espaços escondidos no interior das prisões, atrás de placas de aço ou
paredes duplicadas, evidenciando que o segredo é uma das formas estratégicas do poder
político. Corpos desaparecidos, que envolvem ações das forças policiais, as quais mobili-
zam técnicas de fazer sumir, parte integrante de uma ampla maquinaria de produção de
morte. Sujeitos que, ao mobilizarem a greve de fome como estratégia política na luta por
direitos, evidenciam que, nos tempos atuais, a defesa da morte não só é publicamente
aceitável, como também há vidas que valem menos do que outras. Em tempos sombrios
- de dissolução de direitos adquiridos, de propostas autoritárias para a resolução de con-
flitos sociais, de utilização das Forças Armadas para os mais diversos fins –, o presente
dossiê visa lançar um pouco de luz acerca do horror, do segredo e do abominável que
marcam as dinâmicas de funcionamento de distintos aparelhos estatais.
Organização: Fábio Mallart e Luís Brasilino.