22 Le Monde Diplomatique Brasil^ M A RÇO 2019
200 MILHÕES DE GREVISTAS CONTRA NARENDRA MODI
Na Índia,
os “bons dias”
vão ter de esperar
Entre abril e maio, 850 milhões de indianos irão às
urnas escolher os membros da Câmara, que por sua vez
designará o próximo primeiro-ministro. Ninguém arrisca
qual será o impacto eleitoral das greves gerais que
sacudiram o país em janeiro, uma das mais poderosas
manifestações populares dos últimos anos
POR NAÏKÉ DESQUESNES*
E
nquanto o Bharatiya Janata
Party (BJP), o partido naciona-
lista hindu no poder, busca re-
novar suas chances nas urnas na
primavera, as ruas não esperaram: em
8 e 9 de janeiro, em toda a Índia, entre
150 milhões e 200 milhões de pessoas
deixaram o trabalho para sobrecarre-
gar as cidades com sua cólera. Ônibus
nas garagens, bancos fechados, crian-
ças em idade escolar em férias força-
das, rodovias bloqueadas, imagens do
primeiro-ministro queimadas: em to-
da parte, a economia foi perturbada.
Dezenas de ativistas foram detidos pe-
la polícia e trabalhadores foram grave-
mente feridos, com fraturas expostas e
golpes na cabeça, particularmente no
estado do Rajastão.
“Os bons dias estão chegando”,
proclamava em 2014 o slogan de cam-
panha de Narendra Modi, o atual pri-
meiro-ministro. Cinco anos depois, os
dias ruins não parecem prestes a ter-
minar. É verdade que o crescimento,
de mais de 7%, permaneceu robusto,
dando origem a recentes cumprimen-
tos do FMI.^1 Mas os números do de-
semprego são tão calamitosos que,
desde 2016, o Ministério do Trabalho
não divulga mais estatísticas. Jovens
migrantes vindos do campo estão in-
chando os centros urbanos, prontos
para aceitar tudo. Até quem tem diplo-
ma encontra dificuldade para conse-
guir emprego. Em 2018, a companhia
ferroviária abriu 63 mil vagas – 19 mi-
lhões de pessoas se candidataram!
Modi iniciou a privatização do se-
tor ferroviário e dos bancos. Já cortou
o orçamento da saúde – que não repre-
sentava mais que 1,2% do PIB em 2018
- e o da educação – 0,6% do PIB.^2 O do
Programa de Assistência ao Emprego
Rural, o subsídio para cantinas escola-
res, que fornecia uma refeição grátis
para todas as crianças, planos de água
potável e missões para a alfabetização
estão também em processo de corte.
Também estão sendo questionadas
as 44 leis nacionais sobre o trabalho,
que introduziram a semana de traba-
lho de 48 horas – oito horas de trabalho
por dia, um dia de descanso por sema-
na – e a obrigação de uma autorização
administrativa para as demissões eco-
nômicas; um patamar de proteção ar-
rancado com muita luta no momento
da independência, fruto de um com-
promisso com os empregadores e as
forças reformistas, e muito invejado
pelos vizinhos asiáticos. As leis serão
substituídas por quatro regras que re-
duzem os direitos dos empregados em
favor dos empregadores e entravam as
liberdades sindicais: tão logo seja vo-
tada a Emenda 2018 à lei de 1926 (India
Trade Union Act), as autoridades re-
gionais terão novos poderes de inge-
rência nos sindicatos, tanto para seu
reconhecimento oficial como em seus
conflitos internos, os quais poderão
arbitrar. Por exemplo, no Rajastão, que
serve como um laboratório para a polí-
tica do governo central, será preciso
haver 30% de sindicalizados em uma
empresa (contra 15% hoje) para que
um sindicato possa ser reconhecido.
EFICIÊNCIA INCERTA
A “simplificação” da lei sobre os
conflitos na indústria (Industrial Dis-
putes Act), de 1947, também permite
que fábricas que empregam até tre-
zentos funcionários decidam o fe-
chamento administrativo sem auto-
rização do governo (contra cem
funcionários anteriormente). “Agora,
86% da indústria está nessa condição
e pode, portanto, explorar livremente
os trabalhadores graças a essa cláu-
sula”, comenta Amarjeet Kaur, secre-
tária-geral do Congresso dos Sindica-
tos da Índia (Aituc), filiado ao Partido
Comunista da Índia (PCI). Os contra-
tos com duração determinada, antes
reservados à indústria têxtil, foram
estendidos a todos os setores, em no-
me da flexibilidade.
E mais: a lei trabalhista diz respeito
apenas ao setor formal, ou seja, 7% da
população ativa, ele próprio com um
índice de sindicalização de apenas
2%. Outros setores permanecem mui-
to difíceis de organizar. No entanto, a
greve de janeiro viu a convergência,
modesta, mas cada vez mais visível, do
setor público e do setor informal (tra-
balhadores da construção civil, traba-
lhadores domésticos, condutores de
riquixá e taxistas...). Sem mencionar
os camponeses e os empregados do se-
tor agrícola.
No entanto, essa ampla mobiliza-
ção pode realmente ameaçar as forças
antissociais no comando do país? Na-
da menos seguro que isso. A Índia está
acostumada a grandes marchas sim-
bólicas e greves gerais; a de janeiro é a
terceira do quinquênio Modi, depois
das de setembro de 2016 e de setembro
de 2015. Dessa vez, cerca de uma dúzia
de sindicatos se reuniu em torno de
1 “India’strong economy continues to lead global
growth” [A forte economia da Índia continua a lide-
rar o crescimento global], FMI, Washington, DC, 8
ago. 2018.
2 Business Standard, Nova Déli, 4 fev. 2018.
3 Anand Teltumbde, “McCarthyism in Modi’s India”
[Macarthismo na Índia de Modi], Jacobin, 23 out.
- Disponível em: <www.jacobinmag.com>.
uma plataforma comum, e aqueles afi-
liados a diversas forças comunistas
eram, como sempre, a maioria. Mas a
central social-democrata, o Congresso
Nacional Sindical Indiano (Intuc), foi
colocada em primeiro plano, apenas
para dar credibilidade como força de
oposição ao Partido do Congresso, ao
qual está ligado. Já a oposição comu-
nista – o PCI, o Partido Comunista In-
diano Marxista (PCI-M) e o Partido
Comunista Indiano Marxista-Leninis-
ta (PCI-ML) – não está preparada para
forjar um movimento político comum
que representaria as aspirações dos
mais desfavorecidos: trabalhadores,
mulheres, muçulmanos, populações
tribais, dalits.
Enquanto isso, os intelectuais mili-
tantes – estudantes, professores, jor-
nalistas etc. – sofrem pressões e pri-
sões. Um “macarthismo à moda
indiana”, para retomar as palavras do
escritor Anand Teltumbde, assediado
pela polícia.^3 Muitos, inclusive na es-
querda radical, esperam a vitória nas
eleições da primavera de uma coalizão
liderada pelo Partido do Congresso,
símbolo de um neoliberalismo com
uma face mais humana...
*Naïké Desquesnes é jornalista.
© Daniel Kondo